sábado, 21 de junho de 2014

Antropofagia

Recém chegados, ela, crisálida, deixa que o vestido, anágua, meias, véu e grinalda escorram para o chão. Sobe nua na cama, os olhos verdes, imensos, pregados nele. O sujeito à porta, salivante, tira a gravata, lento, leva-na à maçaneta e segue. Percorre os quilometros de perna que ela estende, devora-na com os olhos, deita-se sobre ela, a estaca firme. Agarra-lhe os seios, a eles leva a lingua, os dentes, amarra-lhe as mãos por cima da cabeça, afunda-lhe, enterra-lhe.

Por outro lado, ajoelhado, débil, erguendo contra o sol o anel pesado, ocre, ali, brilhante e promissor, pensava, subitamente, que cometera um erro. Amaldiçoado pela faísca da ideia - a faísca da bola de neve - enfia a aliança falange adentro. Esperara por muito tempo ser resgatado de dentro da própria vida. Marchava agora para o sepulcro de um trato.

Pensou em suicídio no momento cataclísmico, mas não o fez. Casou-se. Debulhou-se no prato de bacalhau e na garrafa de vinho. Discursou. À vida que se re-inicia, aos filhos que virão, azulejos, tevê à cabo, prateleiras, dietas, encontros furtivos no elevador com a vizinha - com as nádegas da vizinha, com seus lábios inchados, gorduchos, com suas unhas compridas, os pêlos descoloridos -, à poltrona imensa, caduca, no centro da sala, ao bater ponto do barulho da cama ricocheteando contra a parede, ao universo de mundo girando do lado de fora da janela, ao dedetizador, a todos presentes, obrigado por virem.

No trajeto de carro, seguem ambos em silêncio. Um bico de chuva escorre pela janela, parece orvalho, parece botão. Ela pega sua mão, prega-lhe um beijo, abre a boca num riso troçado, mas permanece quieta. Por trás da madeixa da cóclea de cacho dos cabelos, ele pensa, reflete: odeia-lha, arruinou o resto de seus dias, enfeitiçou-lho, a bruxa. Com os seios explodindo para fora do decote inebriador e o alvor verde dos olhos engaioladores, hipotecou o compromisso. Coagido. Oscilou. Afrouxou. Mas daria um jeito.

Serpenteia-lhe, esmiuça-lhe, vira-lhe do avesso, de costas, penetra-lhe o vai-e-vem desesperado. Abocanha-lhe o pescoço suado, empapado, leva os dedos à lingua nervosa e arrepelada. O charco de dedo intumescido ele mergulha no broto da rosa, da rosaça, abraseada e cozida. E mete-lhe o dedo fundo. E suga o dedo. Afasta-se. A miragem: as sépalas. Chupa-lhe a concha úmida. Saliva. Esmaga, amassa, fulmina, soca e sova os dentes na cabaça. Morde-lhe, arranca-lhe carne, encharcado de sangue, da lambança preta-púrpura-carmim, surdo aos uivos, abre covas na pele, nos músculos e fibras e seiva e lava. Segura-na pelo pescoço, devora-lhe os mamilos, as ancas, a ponta da orelha, o beiço e a orla do corpo. Côme-la.