terça-feira, 25 de novembro de 2014

O primeiro ato se dá por dentro da minha cabeça. Ele começa: reviro a bolota dos olhos na órbita e dou de cara com uma moscona varejeira no meio do terreiro vazio. Ela me enxerga de volta, com os oitenta olhões abugalhados e parte para sua higiene. O de praxe, enrabiola a pedrinha alva entre as patas, incendeia o pito e puxa a fumaça pro fundo do estômago. Um pipoco alucinante de sineta se ataca entre os meus ouvidos. A porta do quarto bate (uma e duas vezes). Instala-se o éden do areal.

Tu - imenso, coberto de calos na ponta dos dedos - surge pela fresta dos tijolos. Como da primeira vez que te vi, me cai o queixo, entorno a cachaça, pego uma sementinha de papoula (a macumba começa assim) e lh’abraseio na cabeça do fósforo. Polvilho esse borralho numa bacia cheia de água, mergulho os pés, os ombros, as ancas dos joelhos, me lavo das unhas aos cabelos. 

Ainda por dentro da minha cabeça tomo conta que nosso quarto está virando um roçado. Isto é, pilhas e pilhas de copos, bitucas e palhas de cigarro, um borogodó saindo pelas caixas de som, cheiro de pão e cheiro de queijo. Te deito estendido com o lombo das costas pra cima, me encurrupicho com a boca grudada no teu pescoço, alucinada no gosto de barro. Mal tua lingua começa a me circundar, mal sou brocada, mal te arranco as calças, a sineta bate mais uma vez e eu abro os olhos.

No avesso do avesso, topo contigo na prumada da janela. Chegara ali a pouco, depositava o olhinho baixinho de passarinho longe, agarrando entre os dedos um cigarro sem filtro com um naco de cinzas dependurado, eminente. Levanto, rodeio a porta, esfrego as mãos debaixo da torneira e volto pro nosso silêncio aterrador. Passado um tempo, você se senta ao meu lado, segura minha coxa, afasta as minhas pernas, toma meus braços, enreda meu pescoço, me chupa a orelha, tapa minha boca e com os tentáculos restantes se embrenha na minha tabaca. Eu acato e hiberno com os olhos cheios de água. Você se desaconchega de dentro de mim, não sei se terminado, coloca teu mangalho pra dentro da calça e se levanta. O brio da tua boca se mexe, como se fosse dizer algo. Mas não. Você dá meia volta e sai batendo a porta.

sábado, 15 de novembro de 2014

Ocaso

Já era noite fechada. Batia o toque do relógio. Batiam no passeio as solas dos sapatos. Batiam as mães nos briocos das crianças e batia o martelo nos pregões. O covil recém cavucado da catacumba se delongava alguns palmos pra baixo. Dentro do caixote, morta, ajuizada, c’os dois olhos bem abertos, repousada, calada, esperava. Por detrás das pupilas arregaladas ecoava o estrondo dos punhados de terra que atiravam por cima do caixão. Passada a enxurrada, seguiu-se o silêncio. Cá estou, pensava, instalada na perpétua cripta. Um polvilho seco lhe empapava a boca e ela não conseguia emitir zurrada alguma. O risco que a corda fizera ao lhe trespassar a garganta fervia. Ela aguardava. Lá fora o sol eclodia pela quarta ou quinta vez. Entornava fulgor, alvor e calor. Alumiava um tudo, ela imaginava. Seu palácio hermeticamente cerrado, turvo e abafado, cada vez mais apertado, cada vez mais desbotado. No curso dos anos corridos, instalou-se-lhe na cabeça um cancro matador. Dos tempos de vivência, herdara o negrume devastador que culminou no suicídio: atirada pelo piquete da janela, pendurada pelo pescoço. Carcomia-se. A esta altura já decompunha-se. Era um caniço mascado, escangalhado, recheado de vermes balofos, empanturrados. Ainda podia balouçar o naco do dedo indicador, que tamborilava freneticamente. Ali, com tudo esclarecido, a mente torrada e enegrecida, punha-se tod’arranjada e composta para o que viria a seguir (“Há algo! Virá! Seja um roçado, o matagal do Éden, seja o abismo afogueado e desassossegado do Hades. Ainda que o previsto seja este último: a Dinastia da Labareda, o cão de três cabeças à guarda do pórtico, o sabor de ferro,  o “grão poço, amplo e profundo”, repartido em dez cavas o seu fundo. Ainda que umbral purgante: há algo fora da masmorra!”). Já não tinha reminiscências da vida, tinha a mente em ruínas. Afigurava primorosamente, no entanto, o ensejo do suicídio. Ainda podia resgatar o gosto da linfa lhe subindo à boca, a fuça estourada, enfurecida, o coração crápula parado, as bolsas de ar afogadas no ranço amargo dos motivos que lhe conduziram àli. Às vezes ainda sentia a vertigem da dependurância e saracoteava os pés flutuantes (que nesta vau do transe já não existiam). O propósito daquilo, porém, lhe fugia. Não percebia se era causo de amor, de vingança, dinheiro ou doença. Pouco lhe importava, na verdade. A esta altura lhe sobrava um par de olhos escangalhados na casca das órbitas. Ainda assim, esperava.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A cigarra, albergada do lado de dentro das janelas, há algumas horas já entoava seu aboio estampido. Eu podia senti-la acoçando o cambitos das coxas na pança. Ela gemia e goelava um mantra eterno, pontual, como a bituca dum alfinete brocando o tambor dos meus tímpanos. Eu mergulhava minha cabeça pra dentro da fronha, estorvada, tropeçando num labirinto de sonecas, num qual número de devaneios por detrás dos olhos fechados, mas apertada pela gastura do arquejo, batidas as quatro horas da manhã, desembarguei na missão: devia matá-la, despedaçá-la, arrochá-la na sola do chinelo, roer-lhe as patas e rasgá-la, esbofetá-la, ulcerá-la. Debrucei-me sobre os colchões, percorri todas as pontas do quarto, de esquina a esquina, desabrolhei as portas dos armários e revistei cada bolso, cada costura de cada gola, galgando meias, jarras e urnas de perfume. Desencaixotei as gavetas dos trilhos e desparafusei a tampa da mesa. Escafedida, a cigarra zurrava. Sentei no chão em meio aos escombros, demolida e exausta. Ali, c’os olhos enterrados na palma das mãos, manifestou-se o fio da meada da epifania. O sol apontava na brecha da janela, entranhando-se pelas cortinas e já me malhava o peito do pé quando decompondo aquele alarme estrondoso, tateando-no e despiolhando-no, tomei conta. Levei o cômoro dos dedos até o coco da cachola, n’altura das têmporas, no forame do crânio. Ela pulsava. Mugia apupada no meu lóbulo temporal, descascando-se, aguda, drástica. Ela estava ali. Eu estava emparasitada.