domingo, 27 de dezembro de 2015

Curva

Eu havia construído uma máquina do tempo. São relativamente fáceis de confeccionar, bastaram algumas pesquisas ao computador. No cabo de horas, eu parafusava o último fio eletromagnético fulano de tal. Me passou pela cabeça a filantropia de voltar e subornar o aborto da mãe do Hitler, da família Bush, Eduardo Cunha, Judas, pensei em impedir que aqueles aviões decolassem, que o Titanic partisse, pensei no resultado da loteria, nos exames que meu pai devia ter feito, pensei até em entender a construção das pirâmides. Quebrei os miolos nessa reflexão, mas concluí que o desenrolar da bola de neve dos fatos poderia ter consequências excessivamente drásticas e imprevisíveis. Afinal, eu tinha outros planos. Armei a mochila nas costas, girei e virei os botões, pá, pum, estava em nove de novembro do mês passado. 
Encapuzei o rosto e sentei no topo da escada do fumódromo. Assim, ali, eu teria a visão panorâmica. Logo me vejo entrando na festa vazia. Dali de baixo, lanço um olhar para os degraus e de repente, a nós, nos invade a memória ter visto um vulto sentado ao alto. Observei tudo: o instante em que coloquei meus olhos nele e as rondas constrangedoramente indiscretas que eu lhe fazia. Soltei um sorriso manguado enquanto eu mesma espiralava, contentíssima, pelo salão. Será uma pena perder isso. 
Ele não seria o único. Eu voltaria algumas horas atrás, me atacaria com uma pedra no topo da cabeça e, dopada, perderia a hora do momento em que o conhecia. Na volta, seria capaz de sentir-me saqueada e sequelada por outro caso de amor, mas logo chegaria à mesma conclusão da viagem temporal e sairia pelas dobras limpando meu coração. 
Espreitei nosso beijo e desci para a privada, com o estômago embrulhado. Me espremi contra o espelho. Eu era uma assombração do que fôra, os olhos e a boca murchos, quase fechados, secos. Mal me vestia, mal comia, cobria as picadas de seringada no braço e desenvolvera até um diabo dum tique nervoso na pálpebra. Eu devia acabar com aquilo duma vez. Mexi nos botões e caí três dias depois, feito alma penada, voyeur minha e dele, no canto da janela que eu sabia que estaria aberta. Ele desamarrava os fios da minha roupa, me deitava no colchão e desenhava os próprios dedos às costelas na minha barriga. Eu chorava silenciosamente, encostada na parede da varanda, sentindo em mim mesma o aperto da carícia avivada na minha memória. Me bateu uma leve dor cicatrizada no crânio e eu me lembrei porque estava ali. Precisava voltar e arranjar uma pedra. 
Desembarquei no terminal do aeroporto, enquanto ele me despachava (à outra), e prometia que logo, em dias, iria me ver. Eu fui, ele ficou, deu a partida no volante e seguiu pela rampa, para a desemborcação da rodovia. Eu não consegui lhe tirar os olhos, aquela era a ultima vez que o veria. Nos encontramos pela retina no retrovisor. Eu vi a confusão se colonizando da cabeça dele, o pavor. Enquanto virava o pescoço para conferir o que pensava enxergar (a mim, duplicada, novamente), despencava pelo viaduto. No meu transe, me dei a conta que não havia turismo no tempo. A morte dele eu causara por ter causado. Isso já não seria mudado, já havia acontecido em meu nome. Até que passasse aquele mês de volta ao presente, eu permaneci sentada, tremelicando, no meio fio do Galeão. Hoje darão pelo meu desaparecimento. Daí em diante, de nada mais lembro.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

À vó

Joana Negreiros era o nome da minha avó materna. Até esta manhã ela ainda era teoricamente viva, ancorada em todo tipo de artifício tecnológico e entubador que mantivesse seu corpo operante e sua cabeça vazia. Minha vó artista viveu uma parábola (um trecho de montanha russa) com a degradação cachacenta do Alzheimer, do Parkinson, do que tinha direito, mas com um início fabuloso, extremamente mentiroso, todo legendário. Quando escrevo para ela e sobre ela, preciso mantê-la como terceira pessoa. Como um personagem que eu ponho em apresentação: minha vó que não está nem cá nem lá. 
Ela tinha uma mãe branquinha, mirradinha, habitante do Amazonas. Viu minha vó crescer em oca e mandioca. As últimas palavras da Joana foram uns “mamães” de partir o coração. Já crescida, a caminho de Manaus, minha vó conta que o avião caiu e não sei quantas pessoas morreram. Mas ela não, porque era durona e mais: não tinha o menor medo de voar. Eu tenho. Um pavor. Um colapso. Fosse menos instruída na arte do autocontrole, seria a pior companhia aeroviária. Eu que já choro e, semanas antes da viagem, já carrego a certeza da minha morte eminente. Não entro em uma sala de embarque sem todo um ritual de reza ateísta e despachamento espiritual. Já em Manaus, ainda conta a minha avó, foi quando conheceu Che Guevara. Bati os dados historicamente: o sujeito esteve no Norte do Brasil na época. Não estou me proclamando neta distante de revolucionário pseudo cangaceiro nenhum, longe de mim. 
Ela amava o Rio de Janeiro. Ainda está lá, em casa. Minha vó foi artista plástica, bem da boêmia. Pintava retratos por encomenda, sentada na frente do cavalete, segurando a foto em questão numa mão e na outra um pincel fininho. Mas sua escola eram os temas indígenas. Enchia as paredes com primeiras missas, talhava os armários de floresta amazônica, metia arara, mamilos, pézinhos e urucum onde houvesse espaço. Foi casada, divorciada, abandonona, fez quatro filhos e meio, um mais lindo que o outro. Assim que eu nasci, minha vó me pegou dos braços da enfermeira e foi tratar de meter dois brincos, um em cada orelha. E era assim que eu já estava quando minha mãe me amamentou pela primeira vez. Daí em diante, parece que nunca me entendi com os santos dessa mulher. Ainda muito pequena, descontrolada, vivia fazendo caretas para a Joana. Não gostava da forma como ela me olhava e nem de quando encostava em mim. Eu sabia que ela explodiria a qualquer momento. 
Ela nunca ficava doente. Um dia bateu uma febre, enxaqueca, gripe, tudo duma vez, minha vó, índia por dentro, branca por fora, voltou pra aldeia e foi ter com o pajé. Após um nada de exame ele perguntou se ela gostava de tartaruga. Ela amava tartaruga: frita, assada, crua talvez, com pimenta do reino, bem salgada, acompanhada dum licôr. Mas a tartaruga em questão deveria ser criada. Assim, Joana, sei lá como, meteu um bicho na bolsa, voltou pro Rio de Janeiro e largou a fulana no chão de taco do apartamento de Copacabana. Dali em diante, sarou. Sarou sentada, metendo pedacinhos de mamão e couve na boca das bichinhas (no plural, porque até o fim, conto quatro ou cinco). 
Disse-me uma vez que havia encontrado o Papa, reunido-se com ele, conversado um tanto. Neste ponto da minha adolescência, já não levava fé em nada nela. Aos 70 anos pulou da ponte amarrada por uma corda, mas naquele tempo que minha vó vinha nos visitar, sentava em frente à TV e chantageava a empregada para que fosse ao mercado comprar umas cervejas. Era assustador vê-la bêbada. Minha vó era muito agressiva e muito vaidosa. Adorava batom. Vestia-se como eu me visto. Frequentava a casa do Chico Buarque. Redundante: eu sou minha avó. Guardadas as devidas proporções. 
Ela já estava infantilizada, presa numa clínica, pintando quadros tenebrosos que regrediram a colagens em folhas A4, o próprio nome, rabiscos e nada. Um dia, com a minha prima, limpando o sebo dos armários, encontramos a tal foto da minha avó com o Papa João Paulo II. Ela estendia uma moldura imensa em que ele rezava a primeira missa. Ele sorria, eles conversavam sobre o quadro e ele posava para o retrato. Mas naquele ponto, ainda que eu quisesse, não arrecadaria mais história nenhuma pra contar. Fosse cabeluda do jeito que fosse. 
Nos saltos das gerações, acho que minha vó encarna cada vez mais em mim, conforme descarna de si. Minha mãe sabe e vê. No entanto, o que quero deixar registrado: este pensamento, antes, me provocaria arrepios. Não mais. Quero que ela seja muito bem vinda. 

Pintura da vó

Diário de viagem: salmo a São Paulo

Meus calcanhares martelavam o chão do aeroporto na fuga em direção ao portão de embarque. Eu provavelmente estava atrasada: metade lordose da maleta pesada no meu ombro direito e metade furiosa por ter gasto doze reais numa garrafa de água. Em frente, na minha direção, vinha um grupo de velhotes com uniforme de bocha e pirocas tensionadas detrás das bermudas. Segurei a caixa do trompete com força entre os dedos, enquanto eles babavam, ejaculavam e me pediam para tocar na flauta deles. Despirocada, num acesso de ralha, enquanto a esteira me arrastava na outra direção, eu urrava “porcos e broxas”. Entrei com os dois pés direitos na aeronave e rezei até que desembarcasse em São Paulo. 
Assim que o portão automático se abriu, me desceu pelo nariz toda bruma impregnada de haxixe (ou talvez só monóxido de carbono) que era o ar da cidade. Tomei um ônibus, uma ladeira, entrei na rua Artur Prado número sei lá quanto e cacarejei a campainha para acordar minha anfitriã. Fizemos arroz e feira. Toda quinta fecham a perpendicular à entrada do prédio e, aos gritos, compra-se alface, couve, camarão, agrotóxicos, colheres de pau, pastéis e o escambau. 
Naquele dia ainda desci e subi a Paulista, formando e estourando bolhas nas bordas do pé. Vi uns rostos, retiragens e exposições. Voltei pelo caminho da padaria, fritei um pão no ovo, virei três garrafões de cerveja e assisti o último episódio da novela.
De manhã eu peguei a caixa da corneta, um metrô e caí na Pinacoteca. Ao lado do museu havia um parque onde sentei, treinei e toquei uns pedaços de Summetime até que me marcasse a embocadura. Recebi uns “jóias” aprovativos de quem passava, que me valeram mais que umas moedas de trocado. Imbuída de muita fome, me perdi entre as ruas desgovernadas, umas tais em que não se falava português e era difícil saber a procedência dos pratos. Guiada por um cheiro de óleo passado, encontrei um senhorzinho que vendia pipocas, mas bastou que eu virasse a esquina e duas bicha falidas, com cheiro de cola e peitos murchos, me vieram veladamente tentar assaltar. Eu as convenci a levar só o pacote que eu comia e elas foram embora. 
Debaixo da chuva, entrei na estação da Luz em hora de pico, gado e de cardume. Não posso imaginar o suplício duma esmagação diária: das cotoveladas, dos corpos suados, dos cheiros de dente mal escovado. Esfoliei-me muito no banho e andei até a rua Roosevelt. O Leonardo me esperava debaixo do toldo, fugido do aguaceiro, já matando os goles da garrafa. Quase conseguimos comprar ganja. Pulamos os portões de um viaduto debaixo da delegacia. Lá embaixo uma velha dormia sentada e um rapaz andava de skate. Derramamos cerveja e dançamos dois solos debaixo dos holofotes do túnel e da garoa. Seguimos pro samba em frente à Igreja Nossa Senhora Achiropita. Voltamos pelo mesmo caminho a tempo do aniversário da Clarisse, a tempo do borrão na minha memória, em que bebemos, dançamos, ligamos Faroeste Caboclo no jukebox e apitamos para um táxi. O tal motorista me deu uns dedos de prosa, me tranquilizou sobre minha prova no dia seguinte, levantando barricadas contra a minha insegurança, desligou o rádio e nos enrolou o caminho. 
Às 11h eu estava de pé, ainda bêbada, me metendo no figurino de calça social e blusa poá, tirando e colocando o o bojo dos peitos e lubrificando os pistos do trompete. Peguei dois ônibus e cheguei na USP. Em meia hora eu já caminhava de volta pra parada, depois de muito satisfeita, bem e comida. Em cima do palco da minha prova, fiz o que podia, o que queria e o que me cabia. Resultado algum tiraria meu mérito de dentro da cabeça. 
Naquela noite, fomos ao puteiro, no esquema da entrada a dez contos de réis incluindo uma cerveja aguada da pior qualidade, pole dance e piscina de bolinhas (mentira). A sorturneza do salão não era tão hostil quanto asquerosa. Imbuídos de todo o aval, uns homens e moleques esfregavam os dedos pelas costas de mulheres semi-nuas, que se aproximavam com os olhos de peixe morto e sussurravam um valor de três dígitos em suas orelhas. Um deles veio querer saber por que eu não parecia trabalhar ali. Lhe disse que estávamos todos a viagem e turismo, assim como ele. O dispensei gentilmente. Dali a dois ou três instantes ele voltou puxando todo tipo de papo e ainda querendo saber por que eu parecia ser a pessoa mais interessante dali. Ofendeu-se porque eu não queria prosa, não queria seus olhos em cima de mim e não queria lhe dar meu número. Ele me chamou de estranha-esquisita-escrota e eu concordei, fuzilando-no com a vista. 
Saímos dali para uma festa que esvaziava exponencialmente, um open-bar sem bebidas em que entramos de graça. A Sampa, naquele início de viagem era uma vertigem das rodas que eu fazia e uma distensão nas fibras da coxa, porque eu não era ergonomicamente adaptada às calçadas da cidade. Fechamos a manhã na padaria, entre escândalos de celebração de aniversário. Peguei dois metrôs e caí em coma, na cama. 
Era domingo, demorei a reagir. Levantei atrasada para o show do Bixiga, povoado de umas barbas, cachos e óculos premonitórios, além de muletas, um roubo e quinze gotas de THC. Em cada frevo que chegava, naquele dia, pegava as duas músicas finais. No vagão, a caminho, recebi uma mensagem sobre o resultado da tal prova. Desliguei o celular. Sentamos em frente ao “Banheiro Mulheres” da estação República, fugindo do vento e tomando um açaí. Contornamos os colchões atulhados de vivedores de rua que constelavam na passagem e chegamos na Roosevelt. 
Eu já me sentia solitária e pessimista (então culpada). No bar, escondida, espiei o resultado da lista de aprovados na tela do celular. Uma lista que pulava o meu nome e o de todos que ali estavam comigo. Resolvi não compartilhar nada, que eles ignorassem por mais alguns instantes. Nesse ponto da decepção, a cantora de cima do palco cantava No Woman, No Cry. E dançando foi que afastei a tristeza antes mesmo que ela se encostasse em mim. 
Lá fora, sentados nas escadas, pitando, engolindo e cantando todo tipo de mpbs, nos veio um sujeito meio arcanjo, todo negro, com voz de vitrola, que nos olhava nos olhos, falava de desapego, ganhava um copo de cerveja e sumia. 
Na tarde seguinte tentamos, eu e Clarisse achar um kebab, que virou sushi de pepino e frango no curry. Encontrei o Leo para a saideira dele. Pegamos um ônibus até o Parque Ibiraquera, cada um em sua postura. Ele informava-se bem e um tanto, pediu que o cobrador e uma outra passageira nos avisassem onde descer, coisa que eu nunca faria. Gosto de fingir que sou conterrânea e envergonho-me profundamente de me dirigir a qualquer pessoa que de fato o seja. 
Lá dentro, nos gramados, demoramos até encontrar um ponto entre dois seguranças para que pudéssemos fumar. Encontramos uma fícus enorme e toda enredada de raízes, como aquela árvore da UnB que indiscrimina maconheiros. Compramos ovos de amendoim e água de côco. Com a despedida dele eu senti a antecipação do meu luto pessoal, como se ouvisse um despertador ao longe. 
Fui para a casa da Roberta, um apartamento mobiliadamente muito semelhante ao meu, cheio de vegetais na geladeira e uma rede no meio da sala. Ela me emprestou um conjunto preto, eu coloquei meu colar de barro e pegamos o metrô até a casa de um amigo que ela achava que eu devia muito conhecer, tantas as afinidades. 
Ele morava no terceiro andar de um triplex com um gato da cara esmagada e a maior televisão que eu já vi em vida. Eram palmos de polegadas. As paredes todas eram cobertas de pôsteres graficamente desleixados com palavras de ordem, atulhados de ideias, planos e mandingas. Ele passou horas nos enchendo o copo, passando o cigarro e mostrando vídeos, com os olhos pregados na amiga ao meu lado. 
Pegamos um táxi e chegamos, ineditamente, cedo demais numa festa de tambor de crioula. Estávamos nós, o outro Leonardo e os técnicos da casa. E ali começou meu rapto. Meus olhos brilhavam e se demoravam num sujeito que permanecia sentado, levantado, caminhante, me lançava uns vislumbres curtos e continuava a trabalhar. Saímos para comer algo (uma batata frita muito da cara e miserável) e quando voltamos, já havia gente, música e até festa. Gastei setenta reais em cerveja, dancei forró e côco, girando por diferentes braços e coxas, aceitando diferentes goles de diferentes bebidas, num baile lindo de batucado de ao vivo.
Ali talvez tenha me dado conta do respeito que uma bolha de homens da cidade grande podem prestar a uma mulher como eu. Chegavam com jeito e nada pediam. Eram muitos a mais do que eu estava acostumada, mas meus olhos lantejoulados voltavam a cair no técnico da mesa de som. E eu entenderia os motivos e as causas depois. Ele tinha uns olhos de passarinho fujosos, embolados em uns cachos e num sorriso de sapê. Me lembrava muito alguém. Minha coragem borbulhava no malte e por isso fui com a mão até seu ombro. “Você vem sempre aqui?”. Ele não entendeu minhas intenções e respondeu a minha pergunta enquanto girava e apertava os botões. Contou-me que não deveria estar ali, normalmente trabalhava em outro lugar, noutro contexto, era sistemático, músico e técnico, enfim, era um pouco de coincidência. Perguntou de mim. Se vinha sempre ali. Eu lhe disse que era de fora, lógico, muito por isso o abordava com essa cantada tão da barata. Plantou-me uma saltitação, uma recomposição de alegria, fenômeno que julguei ser fruto do álcool. Eu lhe era como um segundo beijo, a segunda mulher na vida, um segundo reconhecimento - aquilo me bateu - mas um tão hospitaleiro, tão familiar… Eu estava satisfeita. 
Fechamos a festa à hora do trem. No dia seguinte, acompanhada do Zé e do Leo, fui ver a exposição da Frida e de conterrâneas. Era tudo só beleza e eu estava grata de me plantar em frente a murais tão femininos e suculentos, com os quais eu podia trocar qualquer olhar de cumplicidade.
Em frente ao museu havia um container que servia cervejas especiais. Dividimos uma e provei um chopp de ostras. Encontrei um cara que me erguia a sobrancelha e falava um tanto de política e esquerdismos. Foi um bálsamo. Até o final da noite, perdi meu tempo em rodas de prosa e panfletos informativos acerca do uso correto de drogas. Troquei figurinhas no vigésimo oitavo andar, um rapaz tentou me beijar, um taxista se compartilhou de toda a vida comigo, ele focado e eu não, enfim…  
Acordei e não havia água. A água voltou e já não havia luz. Fiquei presa no décimo quarto andar, trancada pra fora das escadas, silenciosa, tomando um banho gelado no breu, aguardando. A faxineira chegou e me salvou o dia, me abriu a porta e me fez uma sopa. Devo ter passado meia hora descendo os lances de escada. A rua inteira estava apagada. Entrei na padaria e não me quiseram espremer um suco. Comprei uma água de côco daquelas industrializadas, fedorentas e assim que abri a embalagem, a lâmpada piscou e as máquinas voltaram a chiar. 
Eu esperava ansiosamente. Ao meu lado um homem barbudo metia pedaços de tomate na boca e falava alto demais ao telefone. Ele levantou-se e nunca mais nos cruzamos. Dali, atravessei a rua e entrei pela porta do Fiat azul. Subimos (eu e ele) a Paulista e, com o pé metido no freio, no gotejamento de engarrafamento, ele me beijava, me passava os dedos pelos cabelos, pelo pescoço, pelas pernas e pelas mãos. Seu toque me escorria, mesmo quando andávamos enlaçados, mesmo sentados do Alto de Pinheiros, ou quando eu lhe colocava a par dos meus fatos e ele o mesmo. 
Havia, novamente, algo de muito doméstico ali, muito acostumado. Assistimos ao “pôr do sol”. Em toda honestidade, fade out da luz é muito pouco pra quem ama como louco e mora no Plano Piloto, mas mesmo assim, mesmo sem vermelhos, laranjas e lilases, mesmo sem a bolota de sol, sem cúmulos de nuvem alguma, entre os arvoredos, no alto da cidade, sentada entre suas pernas, eu sabia que talvez estivesse ali algo de que eu não conseguiria me esquecer. 
Buscamos um amigo dele e fomos ver uma peça musicada e gloriosa, sensacional (O Meu Lado Homem). Seguimos para a cobertura de aniversário de um tal Tubarão, completa de gente que eu quererei no meu meio. Eu me soltava, falava um tanto, me agarrava, mastigava e vomitava. Acordei apaixonada. 
A ressecava embrulhava meu estômago, eu me enrolava no edredom, virava copos de água e pensava em trazer as malas e as cuias pr’aquele poço de cidade. Demorei a arrastar o corpo pra fora de casa. Meti os chinelos e fui caminhar. Varei a Paulista de ponta a ponta: tentaram me coagir a costurar uns dreads no cabelo, quase comprei um disco excessivamente caro da Gal Costa, passei algumas vezes em frente a um protesto simbólico (um pato de banheira gigante e inflado que queria dizer ‘não vamos pagar o pato’, acerca do aumento de impostos). Fiquei irritada. 
Em frente aos jovens que me pediam para assinar o tal abaixo assinado, dois adolescentes comiam um salgadinho e seguravam um cartaz de papelão que dizia “estamos com fome”. Deixei minha interlocutora ativista falando sozinha e fui até uma lanchonete. Comprei dois hamburgueres simples e os entreguei à menina, que nem me agradeceu. Voltei pra casa e de lá pra dentro da rotina do Fiat. 
Ele voltava de uma operação de dublagem, vestia uma camiseta de manga e a essência de Palo Santo, um frasquinho que ele fazia, vendia e me deu, como forma de judiação e urucubaca, provavelmente prevendo que meu travesseiro adotaria o novo odor. Tivemos nosso tempo engarrafados, nosso tempo de peixes, de cafunés e busca incessante por uma vaga, um buraco pra enfiar o carro. Entramos no show do Siba, na Casa da Mancha. 
Eu sentia como se estivesse consagrando matrimônio. Eu (justo eu), que sentimento nenhum cultivava, que era atolada das incertezas, que não sentia sabores, não me deixava envolver, não me enfiava em furada. 
Em um instante ele me disse como foi tão bom ter me conhecido. Da boca pra fora, como se a palavra me atravessasse de uma vida passada, sem filtro, eu disse: a gente já se conhecia antes. Eu não sou mística, nem candombleira, sou muito da agnóstica supersticiosa e pouco sinto, mas nele eu fico reencontrada. 
Comemos um pastel de palmito no posto e arrombamos o finado Puxadinho para que ele me mostrasse onde costumava trabalhar (ou onde deveria estar no dia em que nos conhecemos). A casa estava lacrada pelo Psiu (uma lei do silêncio arbitrária que vem e desemprega, hostiliza, marginaliza e chama música ao vivo de barulho. Estou bem acostumada). 
Pegamos o carro, entramos pelo portão dos pinheiros, pela a porta à direita da bananeira despodada, pra sala instrumentada, na cozinha com o vizinho de quarto e as visitas, os papos de tsunami tóxico e o fim do mundo. Ele montrou um ninho na cama de solteiro, nos aguamos e nos amamos. Viramos a noite em quatro ou cinco horas em que ele se imprimia em mim e eu nele. Reimpressão, eu digo. Fomos mãos, pêlos, línguas, breu completo e um CD alemão que repetia e repetia. Não gostaria de deixar nada por relatar, mas está passado. Cada suspiro e dengo assomava a uns diálogos sussurrados que não fechavam com a minha cabeça. Meu corpo o conhecia, se lembrava, mas não era arrebatador. Não me subia o embrulho pela garganta, não havia nenhuma movimentação no estômago, eu não estava explosiva e não estava atulhada de hormônios. Não havia a taquicardia, nem o nervosismo. Muito pelo contrário. Era como se matasse saudades de algum tempo corrido, como se estivesse acostumada à sua presença e ao bem que ele me queria. O meu pedaço encaixava no dele. No entanto meu córtex não entendia e nem muito o queria fazer. Me dizia que eu estava mentindo. Que era encantamento, que eu velejava na piscianidade, no afeto que ele, melhor que ninguém, soube me oferecer. Que ele é líquido e cabe no recipiente que constar. Que reforma-se. Que eu estava carente. Que não viajasse na maionese. Neste ponto do diário, eu percorro uma lista imensa de substantivos: os dentes, as panturrilhas, as pintas, a barba, as orelhas perfumadas e o encaixe. Eu concluo, então: não são sentimentos, são reconhecimentos. 
Viramos a noite, ele me deixou em casa e pegou um ônibus pra Minas Gerais a trabalho. Sonhei a manhã inteira. Eu estava afiliada. Seis horas depois, peguei o metrô pra São Bento. Fui arrastada pelo Mercado Municipal, comprei uns pedaços de fruta e caminhei pela 25 de março abarrotada de consumidores. Trouxe umas luzes de Natal pra casa, apesar da voltagem errada. Fiquei sabendo d’um prédio altíssimo com visão panorâmica da cidade. Eu buscava um céu constelado de edifícios. Ele estava interditado, ou demolido. Desci na estação Vergueiro, em direção ao Centro Cultural de São Paulo. Era um tombamento bem ocupado por famílias, artesãos de papelão, seguranças, estudantes, dançarinos, leitores de mangá e jogadores de xadrez. Não entendi o funcionamento das exposições e não quis me informar. Munida do fone e da canga, deitei no gramado do jardim suspenso e dei a assistir os aviões passando logo acima (perto demais).
Eu não pensava. Nem sentia. Aguardava. Jogava uvas verdes dentro da boca. Os casais se enrolavam muito, uns nos outros. Talvez por conta de tanta osmosidade, de tanto têr e vêr, por ser mesmo um buquê - a cidade - por ser palco de ilusões, São Paulo me colocava n’outro lugar. No meu lugar. Na minha estima real de grão de areia em olho de gigante. Ninguém lhe vê, de fato. Alguém te observa, mas não lembra. Não basta uma boa ideia, não basta ser conquistador, colonizador. Há que trabalhar. Há que centrar. Há que ter sorte e muita atenção. Há que ter coincidências e aliados. Há muito tempo e nenhum a perder. Há um mundo livre. Eu queria estar ali. “E estou”, diz meu diário. Quero tudo, todo dia, a toda hora: o amor, o reaça, a solidão, a multidão, o parque, a babilônia, o alto, a vertigem, a claustrofobia, o frevo diário, religioso, impecável, as possibilidades todas, enfim, cidade com nome de gente. 
Levantei do gramado e fui abordada por um fotógrafo gringo com uma câmera analógica pendurada do pescoço. Ele me falou de um projeto que desenvolvia, estava viajando pelo mundo todo, em seguida ia para Brasília. Eu deixei que ele tirasse uma foto minha e fui embora. 
Em Vila Madalena, comprei um prato de milho e um chá na caixa, para trocar o dinheiro das passagens. Encontrei a Roberta, que me resgatou e me enfiou numa clínica de Reiki. Eu vinha com a blusa branca, em plena sexta feira de orixás, na esperança de um placebo das minhas dores. Me perguntaram minhas queixas: insensibilidade emocional, enjôos, crises respiratórias e vícios. Ainda me pediram que classificasse meu apetite, sono, carinhos, alegrias… Entreouvi as meditações e me coloquei a fazer o mesmo. Estava silenciada, expulsando os pensamentos e sentindo o grande nada que me ocupava: a grande apatia que eu era, mas não queria. 
Um senhor japonês acupunturista me chama pelo nome e me conduz até uma sala. Ele não me olha nos olhos em momento algum, não sorri e me diz uma porção de coisas que eu já sabia. Um bando de obviedades que não se deve dizer a alguém doente. Me diz que o leme é meu, que a mudança cabe a mim, que ela é pra já, mete o foco todo em meu vício alcoolatra, não busca, nem tenta entender os motivos, apenas as rotinas. Fala em autocontrole, autopresença, automóvel da vida. Ainda me diz que arranje um emprego e coloque meus planos nos eixos. Não entende minha simpatia pela solidão, minha cansadez de repousar a cabeça e a carência em qualquer um. Me dispensa logo para o tratamento. Já acredito menos. 
Entro em uma palestra. No mesmo instante mudam de assunto: antes astrologia, abruptamente reencontros. Falavam num léxico de “amor incondicional”, “conexões de almas”, carapuças e mais carapuças que me abismaram e me levaram lágrimas aos olhos. Mas eu ainda não sentia nada. A ministrante vira na minha direção e me lança uma flecha, diz: “uma coisa real, uma coisa sentida, relevante, una, etc, não precisa ser grandiosa. Não há que ser espalhafatosa. Nem física. Nem compreensível. É apenas um encontro, uma identificação, um algo”. Fechei os olhos e comecei a rezar. Ali eu já queria chorar. E sentir. Sêr. 
A sala ia esvaziando, a chuva aumentava e a luz caia. Eu sentia meu corpo fechado e era justamente o contrário que eu precisava: sentir com a mente e pensar com o peito. Quando levantei as pálpebras, já enxergava muito melhor, menos míope, menos desencaixada. Chovia tão alto que não se escutava mais nada. Haviam arquivado a minha ficha por engano e eu fui a última a ser chamada. Mas não me importava em nada. Era paciente literal. Fiquei alguns momentos na sala de espera. O escuro, o cheiro de incenso e o barulho de gota. Entrei na sala para uma sessão individual. 
Ao rapaz que me escutava eu consegui explicar melhor a dor da apatia. Queria que ele entendesse a origem e a semente dos vícios. Eu não era agente e responsável. Nem vítima. Eu estava vivendo minha vida na perspectiva errada, os estímulos eram todos externos. E como dominó, minhas reações também. Eu atuava a todo o tempo e não tomava instante para sentir. Ele pareceu entender. Me guiou por uma ladeira musguenta onde eu ia abandonando as bagagens sem nem me dar conta no que havia dentro delas: mochilas, malas e caixotes nos cantos da estrada. Ele me tocava a cabeça e as costelas. Saí flutuante pra dentro de uma chuva que me trincou os músculos desguardados. Fui uma contradição física. 
Encontrei a Tuti, a muito esforço, com a bateria morta do celular e nos abrigamos da água em um bar. Bebi pouco, voltei cedo, colecionei mais histórias de taxistas e em casa já estava sóbria. Acordei sentindo-me muito bem. Fiz ovos. Fazia tempo que a comida não me acarinhava o estômago. Andava vivendo de azia. Tomei um banho, recebi um Milton Nascimento de presente mineiro. Respondi com um Doces Bárbaros, lavei toda a louça, tirei a blusa e eu e Clarisse elaboramos o almoço mais trágico que se tem notícia: arroz salgado, cenoura queimada, muito curry na abobrinha e uma couve perfeita. Estávamos destemperadas. Ela correu atrasada para a reunião e eu lhe roubei uma saia. 
Entrei em um cemitério e no epicentro encontrei um silêncio descomunal. Havia queixas de pássaros e algumas ambulâncias passando ao longe, mas era o suficiente. Eu caminhava por labirintos de absolutamente nada. Eu estava completamente sozinha. Pedi licença, sentei nos musgos da cova de uma anglo-saxã, meti as mãos no colo e meditei por alguns minutos. Minha mente limpa era amarela e eu cultivava uma sensação muito boa. Eu irradiava. Eu mandava pra fora e pra dentro em mesmo tempo: mandava pra BH, pra trilha de lama, pra Síria, pro Quênia, mandava pra Paris, mandava pra dentro do coração de quem queria briga, mandava pra debaixo do solo, mandava pra cima e pros lados. Algo me acordou. Levantei, bati uma foto e saí pela rua. Dei de cara no Beco do Batman, um mural urbano de grafite e colôr que não me impressionou tanto quanto as artes pingadas que já permeavam a cidade.
O caminho era um deleite apinhado de galerias, lojas de avental e escorredor de macarrão, bares, gravuras e triângulos. Pedi uma cerveja para escrever. Chegou minha prima bailarina. Chegaram dois paulistas. Chegaram três e quatro. Eles iam e vinham. Uma moleca que passava na rua, voltada de uma festa briguenta, deixou o celular cair no bueiro. Enquanto começava a chuva, a Roberta amarrou com um cadarço o cabo de vassoura na pá e resgatou o fulano do fundo. Foi uma festa. Seguimos para dois ou três outros bailados. Gafieiramos, pamperamos, estacamos e arregamos.
No dia seguinte, na minha saideira, mais o PV, a Tuti e uma garrafa de Bacardi contrabandeada, fomos à matinê de carnaval da Casa das Caldeiras. Compramos coroas de flores na entrada e sapateamos pelo dia quente afrente. Comprei quatro potes de pimenta, no calor da bebedeira. Finalizei minha última noite na sopa de lentilha.
Acordei às cinco. Apertei a soneca algumas vezes e pulei da cama, aflita. Deixei um bilhete para a Clarisse. Gostaria que tivessem sido flores. O dia se abria rosado e eu peguei um táxi até a linha vermelha do metrô. De lá, por fim, entrei no Fiat azul. Preocupação nenhuma me assolava. As saudades não me deixavam - como não deixam - triste. Na correria da última chamada, findou a minha viagem e estourou a minha caneta, no ponto final do diário. 


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Destempero (que eu gostaria de chamar: Ingratidão)

Entrei dentro duma daquelas roupas de neoprene à prova de radiação. Tudo de fruta e piquenique que eu trouxera foi confiscado na entrada. Do outro lado das câmeras de vigilância uma meia dúzia de seguranças parrudos enfiava o pão de mel na boca e peidava no pote de flor. Eu tremia de raiva. Vinha, então, de mãos abanando e foi a primeira coisa em que você reparou. Como de novo costume continuou me encarando de braços algemados e cruzados, sentado por cima da cadeira, de trás da mesa. O silêncio mobiliava a jaula toda. 
Eu não precisava lhe visitar. Tomava uma balsa bem cedo, junto aos molestadores, chegava já com muita fome e ainda era recebida com uma vassoura atrás da porta… Mas ali eu estava permanecida: ancorada num anzol mequetrefe. Sentei na sua frente para que você pudesse ver que eu sabia que você me via. Aliás, estávamos sós. 
Depois de anos embolonhados naquele mesmo vácuo, comecei a preencher meus sons com a esquizofrenia das cigarras e dos programas policiais na televisão. Tudo isso pra dizer que sua mudez não me assusta. Eu completava as lacunas por você. Estava ali, concentrado na lista de culpas que tem a me atribuir. Me culpava por ter deixado um filho em casa e carregar outro na barriga. Me culpava por não conseguir surrupiar dinheiro para que você comprasse seus cigarros. Me culpava até mesmo por ter caído na arapuca do xerife e quem sabe por ter entrado pro negócio de importação de erva. Nesse ponto seus olhos saltaram de zanga. 
Tocou a sirene, eu me levantei e atravessei a sala numa passada só. O trajeto em direção à porta era o meu favorito. Soprava uma brisa, subia o cheiro da água e eu sabia que conseguiria um bom assento próximo às janelas. Pensei em sorrir. Senti uma batida no ombro. Um senhor me chamava que voltasse à sala, pois havia esquecido algo importante. 
- Então.
Você disse.
- Então talvez eu finalmente tenha juntado minhas palavras. Você acha justo? A cada dia que eu estou aqui e você aí, é justo? Os açoites, o tremor, as semanas na solitária, a comida de pasta de dentes, algo disso lhe parece justo? Nós costumávamos estar juntos. E eu contava com isso. Eu lhe ressinto. Tenho certezas que você acha quase merecido, muito bem feito. Acredita que eu causei isso, cada machadada… O tempo que eu estive fora acabou. Suas lembranças não têm o tutano pra entrar por essa porta, mas você arrasta esse corpo morto, semana após semana, caridosa, golpista! Você que devia estar aqui. Eu completo sua lacuna: é a isso que fomos reduzidos.

Da frase de efeito, partiu então um chute. Ou um soco. Espalmado, na boca do meu estômago, rachando o crânio do meu bebê ainda dentro de mim. Eu não sei o que lhe dizer, eu penso enquanto escorro para o chão. Eu ainda não parecia saber o que fazia ali. 


domingo, 20 de setembro de 2015

Sleeping Woman - Picasso

Com vencimento ordenado pra outubro de dois mil e nove, o caixotinho de ritalina cloridrato de metifenidato me encarava na mesa de cabeceiera. Eu tinha mirabolado um plano que esperava e aguardava nunca precisar usar, mas ali ele já estava em andamento. Dormi como uma pedra naquele dia. Escovei os dentes, levei o cachorro para cagar na rua, silenciosa e celibatária, ignorei o porteiro algumas vezes, subi três lances de escada e ao invés de preparar o almoço, enchi um copo de água e joguei vinte comprimidos dentro da boca. Arrumei a embalagem no lixo e deitei na cama para aguardar.
Nesse ponto você já me perguntaria o que eu estou pensando. E eu diria que você acabaria me fazendo essa pergunta. É difícil suportar o silêncio do outro, mas me deixe em paz um instante, que é desse retiro que estou precisada. Então você me faria sentir preguiçosa, encaixaria o dedão e o indicador no meu tendão, mas ainda assim, completamente virado para o outro lado da cama.
Eu não sinto que deva falar sobre isso, eu diria enquanto você ronca, mas é justamente sobre o que não precisa ser pensado, refletido, esquematizado, verbalizado, encaixotado, compactado, registrado, autenticado, rubricado... Aí eu já não lembraria do que estava falando e ficaríamos novamente em silêncio.
Vez por outra enchia o quarto um zumbido chiado de sopro bronquítico. Era a mix tape da rótula do isqueiro acendendo o cigarro, do som da asma, da macumba, do vício, do sistema imunológico e da cerveja descendo quadrada pelo cano. Abri os olhos, entubada na maca dum hospital açouguento do plano de saúde. Ficava ao lado da minha casa. Se você tivesse vindo me visitar, estaria sentado ao pé da cama, passando os dedos pela batata da minha perna. Eu choraria tanto e tentaria me explicar. Eu queria estar pensando o que pensava e sentindo o que sentia. Eu me sentia bem comida. Eu me sentia feliz. Eu me sentia satifeita, orgulhosa, bonita, brejeira, me sentia aterrada, aerada também, eu me sentia desgastada, mas nunca dolorida. Eu sentia saudades, mas era o fim. Nada foi dito.


terça-feira, 30 de junho de 2015

Encrenca de quem não pode, nem deve, nem vai ter

Eu mesma já não lhe prestava respeito. Não lhe jogava bola, estava pouco aí, nem me importava, considerava-me curada. O processo foi duma pena passada: dezenas de radioterapias (Caymmi, Belchior, Bowie), de medicinas alternadas (pinga e dengo) e mais ainda, da tua ausência. Daí, muito por isso, batido o alarme do desapego, lhe materializei:

Foi tal como meus pesadelos aeroviários. Eu desintegrava o assento da cadeira com as unhas, cheia dos berros, a turbina explodia em maremoto metalúrgico pra cima de mim. Levava no estômago aviões voadores que pipocavam, emborcavam e caiam. Naquela noite lhe pesquei primeiro pelos olhos. Seguiram-se as armações dos óculos, a rebarba da orelha encostada no meu travesseiro e a boca espigada vindo na minha direção. Eu cobri os olhos ligeira na emboscada do beijo, mas, ao contrário, você abicado em mim, começou um relato qualquer, ali, entre meus lábios.

Na metalinguagem do conto, você sonhara comigo. Foi coisa breve, de instantes, mas caminhávamos pela calçada, contornando os bueiros propulsivos. Nada de mais, no entanto me alegrou tropeçar no teu pensamento. Você, ainda ali, ecoante no céu da minha boca, precisava lavar e sujar panos de prato comigo. Minha barriga aeroportuária era empanturrada do vazio duma sensação muito deleitosa de tão arquetipada e cabeluda. Me restava meter as mãos pela sua braguilha, lhe abocanhar o sangue e o suco. Eu ruminava e gozava os suspiros de declaração silvada que você me dava. Teu bem querer por mim zunia dentro da minha cabeça. A lembrança é excruciante.

Acordei, empapada num sabor azedo de suor que não é, nem nunca será seu. O sol tentava entrar pela janela, mas tudo fechou o tempo da cortina pra dentro. Os olhos que me olhavam eram montados na íris do desafio. Fui avessada, brochada, enchida da raiva mimosa de quem não terá. Munida da lasca da fronha, acavalada naquele diabo de corpo que não é teu, o asfixiei por debaixo do travesseiro.



sexta-feira, 24 de abril de 2015

Sobre depressão - primeira parte, ainda inconclusiva

Contávamos dezessete noites consecutivas desde o último pôr-do-sol. O frio engolidor nos tocava, uns pra dentro das casas, outros pra debaixo das terras. Esmurrava a porta, nos puxava as meias e se coalhava em gotículas de gelo nos cantos da boca. Em pouco não restaria nada, nem edifícios ou pirâmides, nem contratos de guerras, não sobraria uma geladeira por cima de um ladrilho, não haveria um origami na prateleira.

Mexericando isso, eu escorria pelo sofá, com os olhos aguados beirando a abertura da compota. Sinto toda a falta das manhãs e dos ruídos, das colorações dos fins de tarde, da fruta no pé, dos óculos escuros, de tudo, claro, mas não era este o problema. Insolucionável, como estava, sequei os olhos (perpetuamente) e, por força do hábito fui até a cozinha, para abrir e fechar os armários.

Todo tipo de coisa acontece no fim do mundo. As inúmeras sete bilhões de solidões se colocam em órbita. O telefone cacareja todo dia. Há muitas ligações silenciosas. Não há pássaros. Dorme-se muito. Todo tipo de ser com tamanho modesto invadia as covas de habitação e, naquele momento, me dei com uma milícia de formigas, ocupando-se da pia do banheiro. Não me cabia, no entanto, a hecatombe homicida de abrir a avalanche da torneira por cima delas. Não me fazia sentido. Eu e elas éramos questão de tempo.  

Em dias, as luzes desligaram. Desligou também o aquecedor e a descarga congelou. Encaixotei as parafernálias eletrônicas e as despachei no corredor do prédio. O silêncio imperava numa viuvez familiar. Nada de sussurro eletrostático. Nada de bisbilhotagem forasteira. Só eu. Só. 


segunda-feira, 23 de março de 2015

Ramalho

Todo dia vinha, às oito da manhã, a equipe marreteira para socar e esmurrar as paredes e os assoalhos no corredor do prédio onde morava. Fazia mais de mês desde que lera o aviso pregado na cortiça da portaria: haveria uma grande e gloriosa reforma em toda a teia talhada do edifício, haveria aumento nos gastos do condomínio, haveria um escambau.  

Eu trabalhava aos finais de semana em um escritório de finanças, discretamente livrando-me de atas, contracheques, documentos e marcas de dedais e digitais. Ocupação pouco difundida, muito difamada - e eu posso até entender o motivo. Na gazeta da minha rotina eu lia maços de livros sob a luz da tevê ligada até que batessem as três ou quatro horas da manhã, então dormia o quanto pudesse e passava o resto do turno faxinando a casa. Nesse pregão eu varria, espanava e espirrava. 

Enquanto durou a reforma, deu-se a mudança na minha vida. No primeiro dia, acordei assombrada pelo estrondar dos murros contra a estrutura do prédio, como se pretendessem demolir a nós todos, ali dentro. Saí desabalada pela a rua, ainda nua, da forma como dormia, tentando salvar o resto da vida que me cabia, apocalíptica. A mim me parecia ser despertada cada vez mais cedo. Eles investiam contra o prédio furiosamente, martelavam, surravam e eu já não lia nem faxinava. Não ouvia meus próprios pensamentos dentro da cabeça. Sentava na beira do colchão, me escorriam lágrimas pelas vistas, minha labirintite fervia no tiroteio do aço contra o aço. Da pedra contra a pedra. Tudo já entre as minhas orelhas. 

Não havia nada para mim fora de casa, fora das cobertas, além das pálpebras. Eu percorri todos os pretextos para me ausentar, mas impreterivelmente acabava envolvida na demência fulminante da exterminância das paredes. Foi quando, por acaso, lavando a louça, me dei conta de que aquilo, o barulho que eu arranhava ali dentro, se emparelhava ao barulho que eles latiam lá fora. E na elucidação dos meus problemas, liguei o som numa gravação de fita cassete que veio junto com o rádio. 

Completa uma semana de reforma eventualmente me batem à parede no sopé da cama. Batem como código. Eu abaixo o volume da banda e ouço um “Senhora? Será-se-a-senhora-não-poderia-mudar-de-canção?”. Eu viro e lhe pergunto, com a boca colada na parede “Como é isso? Mudar a música?”. Ele, sei lá quem, diz que sim, que era o encarregado do meu andar, que há cinco dias corridos ouvia a mesma música por nove horas continuadas, que não aguentava suportar. Eu mudei o lado da fita (que talvez fosse um disco na vitrola) e o papo se acabou. 

No dia seguinte me toca a campainha: é da parte de um cedê encadernado, muito do artesanal, todo empoeirado da brita, no tapete da entrada. Pouco depois, começa a martelada. Uma martelada doce, como um marido infiel ou uma adolescente alucinada chegando em casa às duas da manhã. Faço que entendo o código, meto o disco no som e o zumbido caipira invade o quarto. Eu adio a faixa e a música é a mesma. Novamente e afim. Hoje, talvez, há mais de mês, na faixa da sanfona, na melodia constante da martelada, eu encosto na parede condenada. Sei que os azulejos estarão acomodados em pouco. Sei do sossego eminente, sei do descanso célebre, de tudo, um pouco, eu sei. Mas não deixo, nem deixarei de amargar uma tal falta. Que é falta aliada, camarada, estimada. Muito rara, a falta da conversa.  

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Prefácio

O corpo dentro da vitrina: velho, roído, todo têso, já em tempo de abrir (as portas e as pernas). As paredes balançavam com a sineta da basílica de São Nicolau, e ainda, debaixo do toró de gelo, não aparecia pessoa alguma. Fazia três semana que não recebia um níquel, dormia de favor e vendia-se pela bagatela de um nada, fora o que lhe servisse de comer, beber e cheirar. Foi quando abrolhou, na frente da vidraça, com a orelha de cá arrancada e esporrando sangue, um sujeito desagasalhado. Ela fez sinal, assim, com os dedos para que ele entrasse.

Fazia muito frio, a ventania entrava pelas frestas dos dentes, o meliante se equilibrava por cima dumas pernas roxas e tremeliquentas, nu em pêlo, acorrentado n’im um relógio de ponteiro, carregando orvalhinhos de gelo e remela nos olhos. Fechou a porta atrás de si e caiu no chão desacordado. Teodora lhe colocou a cabeça entre os bojos e regou sua testa de beijocas. Rascava o beiço do planalto do nariz até a cordilheira do gogó. Lhe metia a língua na corcova detrás da orelha. Passava então para a lavra manual, enfiando os dedos pelas nádegas, beliscando tufos de cabelo, etecétera. Sentia-se muito escassa e sábia, daí abocanhava umas farpas de carne que saiam da chaga da orelha, mastigava e engolia.

Como se estivesse completamente oca, há tanto só, tão paupérrima e ainda faminta, drenava daquele corpo todo o calor e todo o frio. Quando o rapaz, horas mais tarde, exausto, despertou, engatalhou em toda história do diabo da sua vida. Se dizia filho do sol, vindo a pé do além mar. Andara não sei quantas mil léguas e, recentemente, trocara a aba do ouvido esquerdo por uma caixa de Pandora que há muito deixara para trás. Estava chupado como um osso e aquilo, a Teodora, se apareceu como assunto mais urgente a assentar. Nos dias que se seguiram, foi a rameira até a cidade para abater carteiras e comprar bandejas de coxas de frango para lhe engordar. E ele embuchava sim senhor, em pouco tempo não cabiam os dois juntos na cama. A ela parecia que quanto mais ele inchava, mais espaço ocupava em seus rasgos e cissuras vazios. Aquele intrigante viajante lhe provocava súbitas palpitações, era algo como amor.

Da relação de canibalismo afetuoso e simbiose do frango assado, nasceu uma criança, que chamaremos de Miúdo. O pobre do Miúdo, criado em bordel, filho de pai sem orelha, achatado feito um passarinho, não tardou a ganhar mundo, arranjou um cargo de cantante de rua e, com os trocados que tirou, comprou uma passagem de ida para a cidade ao lado. Ainda que tivesse sido educado com muita pressa, o menino lograva um bom coração. O problema é que não dormia, descansava as pernas e a goela, mas virava a noite de cabo a rabo, esperando o despontar do sol. Nesse giro, sua cabeça envelheceu mais rápido que o corpo, como se tivesse o dobro de tempo, o dobro de pulos das sinapses.

A lucidez era maldição, em tudo via propósito, origem e origami. Em pouco endoidou. Quando cantava, latia. Desmoronava em chororô por muito pouco, ou quase nada. Raspou os pelos da sobrancelha e arrancou os dentes da boca. Ao menos é o que contam. Foi quando um dia, instalado dentro do bueiro, com os dois olhões apontados pra fora, pousou a vista numa moça que vinha desabalada rolando pelo asfalto, com um sapato de cada cor. Ela ancorou com a fachada de frente para ele, enfiou a cabeça no covil e lhe lascou um beijo enorme e esticado. Ele já não conseguia sair dali ou puxá-la para dentro. Contentou-se com a folia de línguas e mucosas que recepcionava. Foi assim que se conheceram os meus pais. Segundo me contam, numa manhã de domingo, enquanto se moquecavam num cultivo de repolhos, me encontraram, recém formada, enrolada pelo pescoço no cordão umbilical. Mas essa história fica pra outro momento.