segunda-feira, 23 de março de 2015

Ramalho

Todo dia vinha, às oito da manhã, a equipe marreteira para socar e esmurrar as paredes e os assoalhos no corredor do prédio onde morava. Fazia mais de mês desde que lera o aviso pregado na cortiça da portaria: haveria uma grande e gloriosa reforma em toda a teia talhada do edifício, haveria aumento nos gastos do condomínio, haveria um escambau.  

Eu trabalhava aos finais de semana em um escritório de finanças, discretamente livrando-me de atas, contracheques, documentos e marcas de dedais e digitais. Ocupação pouco difundida, muito difamada - e eu posso até entender o motivo. Na gazeta da minha rotina eu lia maços de livros sob a luz da tevê ligada até que batessem as três ou quatro horas da manhã, então dormia o quanto pudesse e passava o resto do turno faxinando a casa. Nesse pregão eu varria, espanava e espirrava. 

Enquanto durou a reforma, deu-se a mudança na minha vida. No primeiro dia, acordei assombrada pelo estrondar dos murros contra a estrutura do prédio, como se pretendessem demolir a nós todos, ali dentro. Saí desabalada pela a rua, ainda nua, da forma como dormia, tentando salvar o resto da vida que me cabia, apocalíptica. A mim me parecia ser despertada cada vez mais cedo. Eles investiam contra o prédio furiosamente, martelavam, surravam e eu já não lia nem faxinava. Não ouvia meus próprios pensamentos dentro da cabeça. Sentava na beira do colchão, me escorriam lágrimas pelas vistas, minha labirintite fervia no tiroteio do aço contra o aço. Da pedra contra a pedra. Tudo já entre as minhas orelhas. 

Não havia nada para mim fora de casa, fora das cobertas, além das pálpebras. Eu percorri todos os pretextos para me ausentar, mas impreterivelmente acabava envolvida na demência fulminante da exterminância das paredes. Foi quando, por acaso, lavando a louça, me dei conta de que aquilo, o barulho que eu arranhava ali dentro, se emparelhava ao barulho que eles latiam lá fora. E na elucidação dos meus problemas, liguei o som numa gravação de fita cassete que veio junto com o rádio. 

Completa uma semana de reforma eventualmente me batem à parede no sopé da cama. Batem como código. Eu abaixo o volume da banda e ouço um “Senhora? Será-se-a-senhora-não-poderia-mudar-de-canção?”. Eu viro e lhe pergunto, com a boca colada na parede “Como é isso? Mudar a música?”. Ele, sei lá quem, diz que sim, que era o encarregado do meu andar, que há cinco dias corridos ouvia a mesma música por nove horas continuadas, que não aguentava suportar. Eu mudei o lado da fita (que talvez fosse um disco na vitrola) e o papo se acabou. 

No dia seguinte me toca a campainha: é da parte de um cedê encadernado, muito do artesanal, todo empoeirado da brita, no tapete da entrada. Pouco depois, começa a martelada. Uma martelada doce, como um marido infiel ou uma adolescente alucinada chegando em casa às duas da manhã. Faço que entendo o código, meto o disco no som e o zumbido caipira invade o quarto. Eu adio a faixa e a música é a mesma. Novamente e afim. Hoje, talvez, há mais de mês, na faixa da sanfona, na melodia constante da martelada, eu encosto na parede condenada. Sei que os azulejos estarão acomodados em pouco. Sei do sossego eminente, sei do descanso célebre, de tudo, um pouco, eu sei. Mas não deixo, nem deixarei de amargar uma tal falta. Que é falta aliada, camarada, estimada. Muito rara, a falta da conversa.