domingo, 26 de outubro de 2014

Rapioca

Eu sofrera um golpe terrível. Me preparava para entrar na ducha, como todos os dias, enrolada num bocadito de seda, pitando e cachimbando do Mafu. A água do chuveiro - daquele Banho-Maria - fumaçava, já estava no ponto do chocolate. Eu colocava o ferrão do dedalhão na água da banheira quando o telefone tocou. Você falava muito rápido, desembuchava as palavras, articulando uma trama sinistra, se prestando a me encontrar, fosse a hora que fosse. Tratava-se d’uma arapuca toda muambada, toda tramoiada. Eu lhe disse que viesse e entrei no charco de banho. Por algumas horas me areei com o sabonete de Gabiroba, esfregando a baba do fruto nas coxas, soltando os nós da trunfa de cabelo, acossando furiosamente a Bucha na barriga. Saí desenxugada e topei contigo sentado no sofá, arriado, pelejado do álcool e nu.

Imediatamente lembrei-me que naquela manhã, dirigindo de volta para casa, passava pela terceira vez por cima do gato atropelado. Terceira vez no terceiro dia consecutivo. Dali ele não seria arrancado, percebi, virara um chorume hediondo: achatado, calcado, esmigaçalhado. De si sobrava a ponta do rabo, os dedos e as unhas. Penso que o certo seria saltar para o meio-fio e, caso arranjasse uma pá comprida e amolada, despelar o gato do asfalto, jogá-lo numa sacoleta e atirá-lo ao mar. Mas não o fiz, ninguém o faria. Prevejo que o bichano adubará o revestimento do asfalto por mais um Cenozoico. Logo ele mesmo virará pré-sal.

Sou pouco cerimoniosa, você deve saber, sentei-me à sua frente, surripiada. Me pus de pé e de volta sentada algumas vezes enquanto avaliava-lhe o grau do beijo assassino, enchia copos e copos d’água e redondava os pés no carpete. Você estava ruidoso, tirânico, carniceiro, despótico, fulminante, pendurava-se na janela com o copo cachacento nas mãos, falava um naco sobre política, dadaísmo, apicultura e, nessa brecha do locutório, tomado dum alvoroço colérico, você derruba a taça pelo peitoril e sulcura o crânio duma curuminha que passava na rua.

Abrimos-lhe uma tordesilha no meio da testa. Não tiro minha porção de responsabilidade, afinal quem encheu o copo de óleo e gelo fui eu. Subimos com o corpo desacordado e o estiramos na cama. Você varava o quarto de ponta a ponta, enquanto eu fazia as vezes de enfermeira-boticária budegueira-apotecária e costurava-lhe os pontos na cabeça. Terminava o décimo terceiro nó quando ela despertou acossada, cararaquejando a respeito de ir-se embora, que estava bem, mas sentia uma contrição agoniosa nos ovários, precisava ir de qualquer forma. Não deixamos que fosse, você amarrou-lhe os pés na cama e eu lhe enchi a cabeça de curativos.

Reitero: você ainda estava nu. Suas pernas enormes subiam pelos pés até o estômago e você passava a maior parte dos dias sentado numa banqueta com os olhos pregados na enferma. Eu sempre lhes trazia xícaras de água quente e sachês de ervas, pedacinhos de pedra, comprimidos e blocos de açúcar. Ia trabalhar, mas voltava cada vez mais cedo, vexada pelo meu encargo, muito honroso, distintíssimo. Numa dessas vezes, eu voltava para casa aproximadamente dez minutos depois de estacionar na repartição: atravessei a garagem, requeri o elevador, subi até minha sala, pincei umas quantas migalhas de bolacha de cima da mesa, desci pelas escadas, entrei de volta no carro e vim para casa.

Atrás da porta do quarto, você abrenhava-se pra dentro dela, lambendo-lhe os pontos, empunhado dum malho que se amergulhava e voltava a desembocar, inundando o aposento duma bruma de cheiro grudento. Eu estive ali, entrapaçada, por alguns instantes antes que lhe empuxasse para o outro lado do cômodo. Viere-me e pelei-me pra cima dela. Varejei-lhe as lascas das pernas com a rebarba do nariz. O angu de stalactite e stalagmite, azedo e rançoso, escorria pela minha boca. Eu rapinava e sorvia a fulô de quina a quina. Ela desenlaçou os pés da corda, emborcou de costas, encurvada, descambada, me oferecendo a ostra suada na ampola funda e greta, da qual me ocupei beatamente. Você atravessou o quarto, senti seus dedos esbulhando-me a barra da saia, rechaçando o forro da renda da calcinha, senti a pujança do teu brio de lingua no meu nervo. Pinicou-me até os miolos. Até o pico da centopéia.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Farrapo

A dois carros de distância o corpo emparachocado se estende no chão, a cabeça morta virada para o lado. Retrocedendo um bocado, antes que eu chegasse ali, voltando de ré pelo balão e pela tesoura, seguindo pela via L2, vinha empradentrada, muito calada, muito recolhida, muito doida varrida. Os miolos dentro da minha cabeça cozinhavam: o sol ardia, batia no asfalto como se fosse frigideira, o pó da poeira pendia na altura das narinas e eu sentia gosto e cheiro de areia. Vinha então pensando em meus pequeniníssimos problemas, em suas magnitudes gloriosas, vinha enfadada, suada, emburrada, com as sobrancelhas fechadas uma na outra, bufando: do calor e dos juízos tortos, zarolhos. O meu torpor de sempre me deprimia. Meu coração teratológico se aboiava na bile. Eu começava a reconhecer a aberração em que me tornava. Eu não sentia nada. Nem mesmo o leme do carro nas minhas mãos, nem uma farta felicidade ou massuda tristeza, não sentia nem sede, nem banzo, nem pena, nem nojo, nem vontades, nem qualidades. 

Eu era masoquista também. Era sonâmbula, vez por outra acordava na frente de casa embriagada, vez por outra transava com quem não devia, falava demais e me arrependia, possuída pelo bom senso alardeador do álcool, me desnudava, enchia a boca de pus, gastava muito dinheiro. Algumas noites eu calhava de fumar, enfiava o maço inteiro pela garganta, autocida, cuspia a fumaça, engolia de volta, bebia e bebia, enchia o soalho da boca de pequenos cristais, duns confetes que viravam serpentina, viravam fevereiro dentro do meu estômago. Mas a onda da lombra quase nunca saia dali. A pancada maníaca espumava na minha barriga. Muito pouco atravessava o umbigo. Muito pouco subia pela espinha. No dia seguinte eu naufragava. Embrulhada, encacetada, cada vez mais atrofiada. 

Na certa para coroar o desfecho da minha linha de raciocínio, naquele momento, o carro à minha frente reduz a velocidade, atravanca e pára. Pára também, escarrapachado no chão, o corpo do homem que arquitetava atravessar a rua. Achatado, meio morto, murcho, gasto, asfaltado, ele permanece ali por alguns segundos, até que a porta do carro pistoleiro se abre. Daí em diante, só ouço a buzina entre minhas orelhas. Não senti nada - até o fim da estória não sentirei. Meus dedos escorreram pelo couro do volante, encontram a trava da porta, o carro soluça, morre, eu ando até ele: um velho rapagão, camisa azul, preta, vermelha, os sapatos trocados, apocalíptico. Deito ao seu lado, em frangalhos, porejando meu próprio rastro de asfalto, arranjando o quadro, empinando a obra, aninhando o palco. Eu morro um pouco também.