A dois carros de distância o corpo emparachocado se estende no chão, a cabeça morta virada para o lado. Retrocedendo um bocado, antes que eu chegasse ali, voltando de ré pelo balão e pela tesoura, seguindo pela via L2, vinha empradentrada, muito calada, muito recolhida, muito doida varrida. Os miolos dentro da minha cabeça cozinhavam: o sol ardia, batia no asfalto como se fosse frigideira, o pó da poeira pendia na altura das narinas e eu sentia gosto e cheiro de areia. Vinha então pensando em meus pequeniníssimos problemas, em suas magnitudes gloriosas, vinha enfadada, suada, emburrada, com as sobrancelhas fechadas uma na outra, bufando: do calor e dos juízos tortos, zarolhos. O meu torpor de sempre me deprimia. Meu coração teratológico se aboiava na bile. Eu começava a reconhecer a aberração em que me tornava. Eu não sentia nada. Nem mesmo o leme do carro nas minhas mãos, nem uma farta felicidade ou massuda tristeza, não sentia nem sede, nem banzo, nem pena, nem nojo, nem vontades, nem qualidades.
Eu era masoquista também. Era sonâmbula, vez por outra acordava na frente de casa embriagada, vez por outra transava com quem não devia, falava demais e me arrependia, possuída pelo bom senso alardeador do álcool, me desnudava, enchia a boca de pus, gastava muito dinheiro. Algumas noites eu calhava de fumar, enfiava o maço inteiro pela garganta, autocida, cuspia a fumaça, engolia de volta, bebia e bebia, enchia o soalho da boca de pequenos cristais, duns confetes que viravam serpentina, viravam fevereiro dentro do meu estômago. Mas a onda da lombra quase nunca saia dali. A pancada maníaca espumava na minha barriga. Muito pouco atravessava o umbigo. Muito pouco subia pela espinha. No dia seguinte eu naufragava. Embrulhada, encacetada, cada vez mais atrofiada.
Na certa para coroar o desfecho da minha linha de raciocínio, naquele momento, o carro à minha frente reduz a velocidade, atravanca e pára. Pára também, escarrapachado no chão, o corpo do homem que arquitetava atravessar a rua. Achatado, meio morto, murcho, gasto, asfaltado, ele permanece ali por alguns segundos, até que a porta do carro pistoleiro se abre. Daí em diante, só ouço a buzina entre minhas orelhas. Não senti nada - até o fim da estória não sentirei. Meus dedos escorreram pelo couro do volante, encontram a trava da porta, o carro soluça, morre, eu ando até ele: um velho rapagão, camisa azul, preta, vermelha, os sapatos trocados, apocalíptico. Deito ao seu lado, em frangalhos, porejando meu próprio rastro de asfalto, arranjando o quadro, empinando a obra, aninhando o palco. Eu morro um pouco também.

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