quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Destempero (que eu gostaria de chamar: Ingratidão)

Entrei dentro duma daquelas roupas de neoprene à prova de radiação. Tudo de fruta e piquenique que eu trouxera foi confiscado na entrada. Do outro lado das câmeras de vigilância uma meia dúzia de seguranças parrudos enfiava o pão de mel na boca e peidava no pote de flor. Eu tremia de raiva. Vinha, então, de mãos abanando e foi a primeira coisa em que você reparou. Como de novo costume continuou me encarando de braços algemados e cruzados, sentado por cima da cadeira, de trás da mesa. O silêncio mobiliava a jaula toda. 
Eu não precisava lhe visitar. Tomava uma balsa bem cedo, junto aos molestadores, chegava já com muita fome e ainda era recebida com uma vassoura atrás da porta… Mas ali eu estava permanecida: ancorada num anzol mequetrefe. Sentei na sua frente para que você pudesse ver que eu sabia que você me via. Aliás, estávamos sós. 
Depois de anos embolonhados naquele mesmo vácuo, comecei a preencher meus sons com a esquizofrenia das cigarras e dos programas policiais na televisão. Tudo isso pra dizer que sua mudez não me assusta. Eu completava as lacunas por você. Estava ali, concentrado na lista de culpas que tem a me atribuir. Me culpava por ter deixado um filho em casa e carregar outro na barriga. Me culpava por não conseguir surrupiar dinheiro para que você comprasse seus cigarros. Me culpava até mesmo por ter caído na arapuca do xerife e quem sabe por ter entrado pro negócio de importação de erva. Nesse ponto seus olhos saltaram de zanga. 
Tocou a sirene, eu me levantei e atravessei a sala numa passada só. O trajeto em direção à porta era o meu favorito. Soprava uma brisa, subia o cheiro da água e eu sabia que conseguiria um bom assento próximo às janelas. Pensei em sorrir. Senti uma batida no ombro. Um senhor me chamava que voltasse à sala, pois havia esquecido algo importante. 
- Então.
Você disse.
- Então talvez eu finalmente tenha juntado minhas palavras. Você acha justo? A cada dia que eu estou aqui e você aí, é justo? Os açoites, o tremor, as semanas na solitária, a comida de pasta de dentes, algo disso lhe parece justo? Nós costumávamos estar juntos. E eu contava com isso. Eu lhe ressinto. Tenho certezas que você acha quase merecido, muito bem feito. Acredita que eu causei isso, cada machadada… O tempo que eu estive fora acabou. Suas lembranças não têm o tutano pra entrar por essa porta, mas você arrasta esse corpo morto, semana após semana, caridosa, golpista! Você que devia estar aqui. Eu completo sua lacuna: é a isso que fomos reduzidos.

Da frase de efeito, partiu então um chute. Ou um soco. Espalmado, na boca do meu estômago, rachando o crânio do meu bebê ainda dentro de mim. Eu não sei o que lhe dizer, eu penso enquanto escorro para o chão. Eu ainda não parecia saber o que fazia ali.