domingo, 7 de dezembro de 2014

Romagem

Viajei num marmelado do avião, lacrada no assento ergométrico, pra nunca mais voltar. Não levei nada: nem uma trouxa amarrada no pileque, nem pílulas e calçolas, nem um molho de chaves, nem cedê ou desodorante algum. No cume, no máximo, talvez, por telecinese, apenas meus dois olhos carregados de mágoa. O motor chacoalhou, as rodas se arriaram, propelizamo-nos - o ovini e eu - em linha reta angulosa, até passada a estratosfera, passada a termosfera, passado o enjôo. Retorcia-me paranóica no sibilar da voz da mãe entre os meus ouvidos: vá, mas não volte!

Passados dois dias, abriram-se as portas topadas com a superfície lunar. Hesitei quanto me foi possível. Um pé depois o outro, boiei pra fora da nave. Houve uma fisgada de silêncio e a nau partiu respingando pedaços de rocas todo em redor. Quedei só. Me custaram algumas translações antes do início da peregrinação, mas deu-se. Ambulei pelo farol orbitando a terra, rodeando o sol, no riacho do leite, só.

Nesse ponto do retiro já tomava conta da bola de vermes que crescia na minha barriga. Eu embuchava, perdi as roupas, mais morta quê viva, deixei de andar, emprenhada, até o dia em que me saiu do meio das pernas uma criança analfabeta. Lhe faltavam os dois ouvidos e ela urrava silenciosamente. Me agarrou a auréola do peito sugando a mochiba do curral, me drenando as caixas do pulmão, ordenhando, puxando, puxando. Quando completou sete anos, meus peitos secaram. Passaram meses gotando um jacu de cancro chorumoso, mas no dia que enxugaram de vez, meu frutinho aborígene calado e quieto murchou e morreu. Plantei-lhe o corpo debaixo das penhas e, só, inundei o céu.



terça-feira, 25 de novembro de 2014

O primeiro ato se dá por dentro da minha cabeça. Ele começa: reviro a bolota dos olhos na órbita e dou de cara com uma moscona varejeira no meio do terreiro vazio. Ela me enxerga de volta, com os oitenta olhões abugalhados e parte para sua higiene. O de praxe, enrabiola a pedrinha alva entre as patas, incendeia o pito e puxa a fumaça pro fundo do estômago. Um pipoco alucinante de sineta se ataca entre os meus ouvidos. A porta do quarto bate (uma e duas vezes). Instala-se o éden do areal.

Tu - imenso, coberto de calos na ponta dos dedos - surge pela fresta dos tijolos. Como da primeira vez que te vi, me cai o queixo, entorno a cachaça, pego uma sementinha de papoula (a macumba começa assim) e lh’abraseio na cabeça do fósforo. Polvilho esse borralho numa bacia cheia de água, mergulho os pés, os ombros, as ancas dos joelhos, me lavo das unhas aos cabelos. 

Ainda por dentro da minha cabeça tomo conta que nosso quarto está virando um roçado. Isto é, pilhas e pilhas de copos, bitucas e palhas de cigarro, um borogodó saindo pelas caixas de som, cheiro de pão e cheiro de queijo. Te deito estendido com o lombo das costas pra cima, me encurrupicho com a boca grudada no teu pescoço, alucinada no gosto de barro. Mal tua lingua começa a me circundar, mal sou brocada, mal te arranco as calças, a sineta bate mais uma vez e eu abro os olhos.

No avesso do avesso, topo contigo na prumada da janela. Chegara ali a pouco, depositava o olhinho baixinho de passarinho longe, agarrando entre os dedos um cigarro sem filtro com um naco de cinzas dependurado, eminente. Levanto, rodeio a porta, esfrego as mãos debaixo da torneira e volto pro nosso silêncio aterrador. Passado um tempo, você se senta ao meu lado, segura minha coxa, afasta as minhas pernas, toma meus braços, enreda meu pescoço, me chupa a orelha, tapa minha boca e com os tentáculos restantes se embrenha na minha tabaca. Eu acato e hiberno com os olhos cheios de água. Você se desaconchega de dentro de mim, não sei se terminado, coloca teu mangalho pra dentro da calça e se levanta. O brio da tua boca se mexe, como se fosse dizer algo. Mas não. Você dá meia volta e sai batendo a porta.

sábado, 15 de novembro de 2014

Ocaso

Já era noite fechada. Batia o toque do relógio. Batiam no passeio as solas dos sapatos. Batiam as mães nos briocos das crianças e batia o martelo nos pregões. O covil recém cavucado da catacumba se delongava alguns palmos pra baixo. Dentro do caixote, morta, ajuizada, c’os dois olhos bem abertos, repousada, calada, esperava. Por detrás das pupilas arregaladas ecoava o estrondo dos punhados de terra que atiravam por cima do caixão. Passada a enxurrada, seguiu-se o silêncio. Cá estou, pensava, instalada na perpétua cripta. Um polvilho seco lhe empapava a boca e ela não conseguia emitir zurrada alguma. O risco que a corda fizera ao lhe trespassar a garganta fervia. Ela aguardava. Lá fora o sol eclodia pela quarta ou quinta vez. Entornava fulgor, alvor e calor. Alumiava um tudo, ela imaginava. Seu palácio hermeticamente cerrado, turvo e abafado, cada vez mais apertado, cada vez mais desbotado. No curso dos anos corridos, instalou-se-lhe na cabeça um cancro matador. Dos tempos de vivência, herdara o negrume devastador que culminou no suicídio: atirada pelo piquete da janela, pendurada pelo pescoço. Carcomia-se. A esta altura já decompunha-se. Era um caniço mascado, escangalhado, recheado de vermes balofos, empanturrados. Ainda podia balouçar o naco do dedo indicador, que tamborilava freneticamente. Ali, com tudo esclarecido, a mente torrada e enegrecida, punha-se tod’arranjada e composta para o que viria a seguir (“Há algo! Virá! Seja um roçado, o matagal do Éden, seja o abismo afogueado e desassossegado do Hades. Ainda que o previsto seja este último: a Dinastia da Labareda, o cão de três cabeças à guarda do pórtico, o sabor de ferro,  o “grão poço, amplo e profundo”, repartido em dez cavas o seu fundo. Ainda que umbral purgante: há algo fora da masmorra!”). Já não tinha reminiscências da vida, tinha a mente em ruínas. Afigurava primorosamente, no entanto, o ensejo do suicídio. Ainda podia resgatar o gosto da linfa lhe subindo à boca, a fuça estourada, enfurecida, o coração crápula parado, as bolsas de ar afogadas no ranço amargo dos motivos que lhe conduziram àli. Às vezes ainda sentia a vertigem da dependurância e saracoteava os pés flutuantes (que nesta vau do transe já não existiam). O propósito daquilo, porém, lhe fugia. Não percebia se era causo de amor, de vingança, dinheiro ou doença. Pouco lhe importava, na verdade. A esta altura lhe sobrava um par de olhos escangalhados na casca das órbitas. Ainda assim, esperava.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A cigarra, albergada do lado de dentro das janelas, há algumas horas já entoava seu aboio estampido. Eu podia senti-la acoçando o cambitos das coxas na pança. Ela gemia e goelava um mantra eterno, pontual, como a bituca dum alfinete brocando o tambor dos meus tímpanos. Eu mergulhava minha cabeça pra dentro da fronha, estorvada, tropeçando num labirinto de sonecas, num qual número de devaneios por detrás dos olhos fechados, mas apertada pela gastura do arquejo, batidas as quatro horas da manhã, desembarguei na missão: devia matá-la, despedaçá-la, arrochá-la na sola do chinelo, roer-lhe as patas e rasgá-la, esbofetá-la, ulcerá-la. Debrucei-me sobre os colchões, percorri todas as pontas do quarto, de esquina a esquina, desabrolhei as portas dos armários e revistei cada bolso, cada costura de cada gola, galgando meias, jarras e urnas de perfume. Desencaixotei as gavetas dos trilhos e desparafusei a tampa da mesa. Escafedida, a cigarra zurrava. Sentei no chão em meio aos escombros, demolida e exausta. Ali, c’os olhos enterrados na palma das mãos, manifestou-se o fio da meada da epifania. O sol apontava na brecha da janela, entranhando-se pelas cortinas e já me malhava o peito do pé quando decompondo aquele alarme estrondoso, tateando-no e despiolhando-no, tomei conta. Levei o cômoro dos dedos até o coco da cachola, n’altura das têmporas, no forame do crânio. Ela pulsava. Mugia apupada no meu lóbulo temporal, descascando-se, aguda, drástica. Ela estava ali. Eu estava emparasitada.


domingo, 26 de outubro de 2014

Rapioca

Eu sofrera um golpe terrível. Me preparava para entrar na ducha, como todos os dias, enrolada num bocadito de seda, pitando e cachimbando do Mafu. A água do chuveiro - daquele Banho-Maria - fumaçava, já estava no ponto do chocolate. Eu colocava o ferrão do dedalhão na água da banheira quando o telefone tocou. Você falava muito rápido, desembuchava as palavras, articulando uma trama sinistra, se prestando a me encontrar, fosse a hora que fosse. Tratava-se d’uma arapuca toda muambada, toda tramoiada. Eu lhe disse que viesse e entrei no charco de banho. Por algumas horas me areei com o sabonete de Gabiroba, esfregando a baba do fruto nas coxas, soltando os nós da trunfa de cabelo, acossando furiosamente a Bucha na barriga. Saí desenxugada e topei contigo sentado no sofá, arriado, pelejado do álcool e nu.

Imediatamente lembrei-me que naquela manhã, dirigindo de volta para casa, passava pela terceira vez por cima do gato atropelado. Terceira vez no terceiro dia consecutivo. Dali ele não seria arrancado, percebi, virara um chorume hediondo: achatado, calcado, esmigaçalhado. De si sobrava a ponta do rabo, os dedos e as unhas. Penso que o certo seria saltar para o meio-fio e, caso arranjasse uma pá comprida e amolada, despelar o gato do asfalto, jogá-lo numa sacoleta e atirá-lo ao mar. Mas não o fiz, ninguém o faria. Prevejo que o bichano adubará o revestimento do asfalto por mais um Cenozoico. Logo ele mesmo virará pré-sal.

Sou pouco cerimoniosa, você deve saber, sentei-me à sua frente, surripiada. Me pus de pé e de volta sentada algumas vezes enquanto avaliava-lhe o grau do beijo assassino, enchia copos e copos d’água e redondava os pés no carpete. Você estava ruidoso, tirânico, carniceiro, despótico, fulminante, pendurava-se na janela com o copo cachacento nas mãos, falava um naco sobre política, dadaísmo, apicultura e, nessa brecha do locutório, tomado dum alvoroço colérico, você derruba a taça pelo peitoril e sulcura o crânio duma curuminha que passava na rua.

Abrimos-lhe uma tordesilha no meio da testa. Não tiro minha porção de responsabilidade, afinal quem encheu o copo de óleo e gelo fui eu. Subimos com o corpo desacordado e o estiramos na cama. Você varava o quarto de ponta a ponta, enquanto eu fazia as vezes de enfermeira-boticária budegueira-apotecária e costurava-lhe os pontos na cabeça. Terminava o décimo terceiro nó quando ela despertou acossada, cararaquejando a respeito de ir-se embora, que estava bem, mas sentia uma contrição agoniosa nos ovários, precisava ir de qualquer forma. Não deixamos que fosse, você amarrou-lhe os pés na cama e eu lhe enchi a cabeça de curativos.

Reitero: você ainda estava nu. Suas pernas enormes subiam pelos pés até o estômago e você passava a maior parte dos dias sentado numa banqueta com os olhos pregados na enferma. Eu sempre lhes trazia xícaras de água quente e sachês de ervas, pedacinhos de pedra, comprimidos e blocos de açúcar. Ia trabalhar, mas voltava cada vez mais cedo, vexada pelo meu encargo, muito honroso, distintíssimo. Numa dessas vezes, eu voltava para casa aproximadamente dez minutos depois de estacionar na repartição: atravessei a garagem, requeri o elevador, subi até minha sala, pincei umas quantas migalhas de bolacha de cima da mesa, desci pelas escadas, entrei de volta no carro e vim para casa.

Atrás da porta do quarto, você abrenhava-se pra dentro dela, lambendo-lhe os pontos, empunhado dum malho que se amergulhava e voltava a desembocar, inundando o aposento duma bruma de cheiro grudento. Eu estive ali, entrapaçada, por alguns instantes antes que lhe empuxasse para o outro lado do cômodo. Viere-me e pelei-me pra cima dela. Varejei-lhe as lascas das pernas com a rebarba do nariz. O angu de stalactite e stalagmite, azedo e rançoso, escorria pela minha boca. Eu rapinava e sorvia a fulô de quina a quina. Ela desenlaçou os pés da corda, emborcou de costas, encurvada, descambada, me oferecendo a ostra suada na ampola funda e greta, da qual me ocupei beatamente. Você atravessou o quarto, senti seus dedos esbulhando-me a barra da saia, rechaçando o forro da renda da calcinha, senti a pujança do teu brio de lingua no meu nervo. Pinicou-me até os miolos. Até o pico da centopéia.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Farrapo

A dois carros de distância o corpo emparachocado se estende no chão, a cabeça morta virada para o lado. Retrocedendo um bocado, antes que eu chegasse ali, voltando de ré pelo balão e pela tesoura, seguindo pela via L2, vinha empradentrada, muito calada, muito recolhida, muito doida varrida. Os miolos dentro da minha cabeça cozinhavam: o sol ardia, batia no asfalto como se fosse frigideira, o pó da poeira pendia na altura das narinas e eu sentia gosto e cheiro de areia. Vinha então pensando em meus pequeniníssimos problemas, em suas magnitudes gloriosas, vinha enfadada, suada, emburrada, com as sobrancelhas fechadas uma na outra, bufando: do calor e dos juízos tortos, zarolhos. O meu torpor de sempre me deprimia. Meu coração teratológico se aboiava na bile. Eu começava a reconhecer a aberração em que me tornava. Eu não sentia nada. Nem mesmo o leme do carro nas minhas mãos, nem uma farta felicidade ou massuda tristeza, não sentia nem sede, nem banzo, nem pena, nem nojo, nem vontades, nem qualidades. 

Eu era masoquista também. Era sonâmbula, vez por outra acordava na frente de casa embriagada, vez por outra transava com quem não devia, falava demais e me arrependia, possuída pelo bom senso alardeador do álcool, me desnudava, enchia a boca de pus, gastava muito dinheiro. Algumas noites eu calhava de fumar, enfiava o maço inteiro pela garganta, autocida, cuspia a fumaça, engolia de volta, bebia e bebia, enchia o soalho da boca de pequenos cristais, duns confetes que viravam serpentina, viravam fevereiro dentro do meu estômago. Mas a onda da lombra quase nunca saia dali. A pancada maníaca espumava na minha barriga. Muito pouco atravessava o umbigo. Muito pouco subia pela espinha. No dia seguinte eu naufragava. Embrulhada, encacetada, cada vez mais atrofiada. 

Na certa para coroar o desfecho da minha linha de raciocínio, naquele momento, o carro à minha frente reduz a velocidade, atravanca e pára. Pára também, escarrapachado no chão, o corpo do homem que arquitetava atravessar a rua. Achatado, meio morto, murcho, gasto, asfaltado, ele permanece ali por alguns segundos, até que a porta do carro pistoleiro se abre. Daí em diante, só ouço a buzina entre minhas orelhas. Não senti nada - até o fim da estória não sentirei. Meus dedos escorreram pelo couro do volante, encontram a trava da porta, o carro soluça, morre, eu ando até ele: um velho rapagão, camisa azul, preta, vermelha, os sapatos trocados, apocalíptico. Deito ao seu lado, em frangalhos, porejando meu próprio rastro de asfalto, arranjando o quadro, empinando a obra, aninhando o palco. Eu morro um pouco também.


quarta-feira, 17 de setembro de 2014

(...)

No dia seguinte começou minha transformação. De dia um: nebulosa, desgovernada, ligeiramente suicida. De noite outro: caroço, côncavo. Noutro dia, no calor, no suadeiro: alcóolatra, rodando resignada e vergada. De noite: do avesso, o banzo. Era como lobisomem. Se já era dia, eu me domava, mas no escuro e principalmente atirada na cama-enormessíssima, por cima do cobertor, no bafejo do ventilador, eu asfixiava a lembrança. Ou pior. O epílogo. O início. E o meio. Porque estava acravacado na minha memória, carcomendo-me. Eu não precisava lembrar. Misericordiosamente as trevas evaporavam e eu era desassombrada. As manhãs, claro, eram sempre bem mais quentes que as anteriores, eu derretia e escorria. As tardes eram piores e as noites abominosas! Eu entornava, gotejava e marejava. Estava longe de conjecturar, não calculava ainda, mas a seca qualquer hora chegaria em mim. Atravessaria o Trópico de Capricórnio e me desinundaria.



(...)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Breve e Inconclusiva Epifania; ou Da Ânsia, Apertura, Desconsolação, Desesperação, Do Tormento, Dos Destroços, Do Dissabor; e ainda Da Alfinetada, Da Ferroada e Fisgada

Estava eu, no terrível verão de 1993, vidrada na sombra do bambu. Estava digerindo, deglutindo, sovando e estocando. Estava noiada no transe paralelepipídico. Eu bebia e bebia da garrafa de marafo carijó, desgostosa, e o pior de tudo: vivia um um dia dobrado. Estava lá justo eu, que amava ter coisas na minha boca. Amava, estivessem elas penduradas ou encostadas, fossem garrafas, fossem talheres, cigarros (cigarretes e cânhamo também), ou enormessíssimos pedaços de queijo, beiços, linguas, coxas, lógico, orelhas, rúbricas e gomos inteiros de manga e laranja. Quando não os tinha, chupava os dedos e as unhas. Eu então, àquela hora, roia a pontita da falange, levemente deprimida, escutando só ruídos e enxergando muito pouco. Eu estava jururu, amarga, mas também, sempre fui assim. Eis o que me atormentava: éramos predestinados, porque a minha apatia combinava muito bem com teus maus modos e tua aflição. Éramos dois ingratos, sentados frente à frente, dois covardes, dois malaventurados que juntos coroavam o enrolamento mais fúnebre da estação. Éramos torniquete e estorvo. Nossa solução foi aterradora: estancaríamos a ferida com sal, com a pontinha cega da faca de manteiga. E fosse o que fosse: uma decisão indizível, apocalíptica e tirânica, era indefectível. E indefectível, eu acabara de te explicar, é aquilo que é apropriado, certeiro, constante e efetivo. Contudo - com o caleidoscópio cerebral cabalístico e assombroso do som do estalar e soluçar do cinto de segurança, da flor de pequi, da sua certidão de nascimento, do encaixe do sofá-cama, de tudo o que era lembrança, do que era projeção, do que era invenção e só masoquismo também - não me foi viável te deixar desvanecer, expirar, esfumaçar, puf, desaparecer.


(...)

sábado, 21 de junho de 2014

Antropofagia

Recém chegados, ela, crisálida, deixa que o vestido, anágua, meias, véu e grinalda escorram para o chão. Sobe nua na cama, os olhos verdes, imensos, pregados nele. O sujeito à porta, salivante, tira a gravata, lento, leva-na à maçaneta e segue. Percorre os quilometros de perna que ela estende, devora-na com os olhos, deita-se sobre ela, a estaca firme. Agarra-lhe os seios, a eles leva a lingua, os dentes, amarra-lhe as mãos por cima da cabeça, afunda-lhe, enterra-lhe.

Por outro lado, ajoelhado, débil, erguendo contra o sol o anel pesado, ocre, ali, brilhante e promissor, pensava, subitamente, que cometera um erro. Amaldiçoado pela faísca da ideia - a faísca da bola de neve - enfia a aliança falange adentro. Esperara por muito tempo ser resgatado de dentro da própria vida. Marchava agora para o sepulcro de um trato.

Pensou em suicídio no momento cataclísmico, mas não o fez. Casou-se. Debulhou-se no prato de bacalhau e na garrafa de vinho. Discursou. À vida que se re-inicia, aos filhos que virão, azulejos, tevê à cabo, prateleiras, dietas, encontros furtivos no elevador com a vizinha - com as nádegas da vizinha, com seus lábios inchados, gorduchos, com suas unhas compridas, os pêlos descoloridos -, à poltrona imensa, caduca, no centro da sala, ao bater ponto do barulho da cama ricocheteando contra a parede, ao universo de mundo girando do lado de fora da janela, ao dedetizador, a todos presentes, obrigado por virem.

No trajeto de carro, seguem ambos em silêncio. Um bico de chuva escorre pela janela, parece orvalho, parece botão. Ela pega sua mão, prega-lhe um beijo, abre a boca num riso troçado, mas permanece quieta. Por trás da madeixa da cóclea de cacho dos cabelos, ele pensa, reflete: odeia-lha, arruinou o resto de seus dias, enfeitiçou-lho, a bruxa. Com os seios explodindo para fora do decote inebriador e o alvor verde dos olhos engaioladores, hipotecou o compromisso. Coagido. Oscilou. Afrouxou. Mas daria um jeito.

Serpenteia-lhe, esmiuça-lhe, vira-lhe do avesso, de costas, penetra-lhe o vai-e-vem desesperado. Abocanha-lhe o pescoço suado, empapado, leva os dedos à lingua nervosa e arrepelada. O charco de dedo intumescido ele mergulha no broto da rosa, da rosaça, abraseada e cozida. E mete-lhe o dedo fundo. E suga o dedo. Afasta-se. A miragem: as sépalas. Chupa-lhe a concha úmida. Saliva. Esmaga, amassa, fulmina, soca e sova os dentes na cabaça. Morde-lhe, arranca-lhe carne, encharcado de sangue, da lambança preta-púrpura-carmim, surdo aos uivos, abre covas na pele, nos músculos e fibras e seiva e lava. Segura-na pelo pescoço, devora-lhe os mamilos, as ancas, a ponta da orelha, o beiço e a orla do corpo. Côme-la.