quinta-feira, 9 de junho de 2016

Capítulo 5

Ela não havia me dito. Tratava-se, possivelmente, de coisa da minha cabeça, mas eu sabia exatamente o que devia fazer. O meu plano - e foi o que aconteceu: deveria fazer com que eles voltassem àli. Esfreguei merda pelas paredes todas, até que o futum era tal insuportável que eles abriram a porta, me deram uma surra e chamaram a mulher pra varrer aquilo tudo. Ela veio e, dessa vez eu percebi, destrancou a porta, deixou-na aberta, reclamou da melação, tirou a chave de dentro do buraco, trouxe até mim, eu a esculpi na batata, revesti de bosta e deixei secar. Ela terminou o serviço e trancou a porta.

Agora, o que eu não sabia era o seguinte: quando deveria sair? Certamente não sabia o que havia do outro lado, mas também pouco me importava de morrer. Estava puta da vida. Eu segurava aquela chave fragilzinha entre as mãos e rezava. Foi quando tive o seguinte sonho: passava através da parede, estava tudo escuro e havia apenas um policial naquele corredor. A cada dez minutos, no andar superior, rondava um segundo miliquete, mas era apenas isso. Ao fim da sala havia uma janela gradeada, mas era possível se espremer para fora do prédio, numa queda de quatro andares até o asfalto. 


Eu abri a porta. Com o clique, o policial aproximou-se e deu de cara com a cela escancarada, num tom meio macabro. Ele cerrou os olhos em suspense sobrenatural e entrou. Me encontrou dormindo, como estava, sonhando. Checou mais de perto, estranhou, eu os observei por um tempo, virei-me, fechei a porta às suas costas e os tranquei, na força, quebrando a batata por dentro da fechadura. Acordei do lado de fora e caminhei até a janela. Não havia nada mais que eu pudesse fazer, então, pulei.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Capítulo 4

Fui presa novamente. Dessa vez o caso era grave. Antes que eu me adiante, quero deixar claro que tentei fugir, mas mal cheguei ao corredor do andar e a polícia já estava ali, inacreditavelmente eficiente. Em situações daquela magnitude, de assassinato deslegitimado, o julgamento era dispensado e a própria delegacia conduziria a punição, me explicaram. Eu tinha o direito de sentar, de quicar e de ficar caladinha.

Antes de mais nada, retiraram meu filho aos chutes, até que eu entrasse em trabalho de parto e expulsasse aquele corpinhozinho meladinho. Eu perdia minhas regalias, atrasaram o processo num total de dez horas para que eu conseguisse dar a luz, enfiavam coisas dentro de mim obstruindo a passagem; bastões, garrafas e os próprios punhos. Quando acabou tudo, deitei exausta e assisti enquanto eles abriam minha cicatriz e removiam meu útero, jogavam-no no lixo e fechavam a minha barriga deformada. 

Me deixaram quieta por alguns dias, até que veio uma mulher recolher o lixo. Foi quando me dei conta que a cela fedia. Era cheiro de lixo hospitalar, cheiro de gato morto, sangue coagulado, cheiro de carne velha e ovo podre. Ela usava uma máscara cobrindo o nariz e a boca, jogou água no chão e começou a escorrê-la com um rodo. Pediu que eu me mexesse para limpar aquela parte do piso.
- Isso não é nada, minha filha, não é nada.

Antes de ir embora, destacou um pedacinho do cabo, uma lâminazinha bem mixuruca de madeira. Entregou na minha mão, com o olho pregado no meu. Naquela noite veio um prato de arroz. Por cima, uma batata crua, a casca e tudo.

   


domingo, 15 de maio de 2016

Capítulo 3

Eu precisava de dinheiro para, evidentemente, sair dali. Ninguém me empregaria e o Homem passava dos limites, vinha duas, às vezes três vezes por dia. Eu passava as tardes fora de casa, andava muito em redor do quartel e numa dessas descobri um pequeno quiosque de batata frita onde trabalhava um moleque. Ele estava sentado numa cadeira desmontável, com uma faca na mão cortava em quartos, como uma maçã e jogava os pedaços com casca, verruga, terra e tudo no óleo velho. De início não me deu bola, mas quando eu me ofereci para ajudar no serviço (assim a sacola acabaria mais rápido, a batata queimaria duma vez e todos iríamos para casa), ele levantou-se, me ofereceu o assento e observou o que eu fazia. O toque do corte em palito ou em lâmina já estipulou um novo padrão de qualidade naquela birosquinha. Acabamos o trabalho, eu guardei no bolso três batatas e a faca. Ele me perguntou se eu voltaria no dia seguinte. 

Descasquei metade da batata, firmei a pinça dos dedos na ponta da faca e esculpi uns pedaços de amido, desvendando a forma de flor por dentro do mármore. Fazer tinta é simples: redemunha farinha, água, sabão e a cor - pode ser pétala, terra ou reboco rapado das paredes, veja um tom e tente se apropriar dele, dichava e mistura. Comecei carimbando as paredes do quarto, a imagem final era um grande navio feito de pequenas flores, num horário de outono e pôr do sol. O Homem aprovou e eu fui à rua. Muito atenta à polícia, mesmo que munida apenas de tubérculo, no passo de quatro meses montei mais de cem murais de barco, arquitetura, retrato, história em quadrinhos, nem sei. Quem passava atirava uma moeda e a chuva seguinte limpava o desenho. Ali, quatro meses depois, com a barriga à mostra, eu juntara dinheiro o suficiente para um mês de aluguel. 

O Homem quis me presentear na despedida. Pegamos um ônibus e saltamos no rancho. Ele alugou dois cavalos, ao vê-los senti uma pequena contração no bucho. Me ajudou que eu subisse e disparou na frente, deixando-me só. Fiquei ali, como uma imbecil, por alguns momentos, imóvel. Segurei-me e nos impulsionei para frente. Não funcionou. A cinética não funcionou, mas uma outra coisa sim. Justamente o que você está pensando. Fiz outra tentativa. Dessa vez tudo funcionou -  tudo - o cavalo deu uma passada, depois outra e disparou, contornando o interior da arena. Caso eu não acompanhasse o equilíbrio do trote da cavalgada, eu sangraria e abortaria, uma meleca. Daí, então, me esfregava contra a costura da calça, o bebê dentro de mim chacoalhava e a massagem subia até o topo da moleira da minha cabeça.    

Achei que morreria. Depois de tudo pelo que passei, naquele momento, com os lábios latejando, achei que fosse o fim. Passou muito pela minha cabeça, durou dez segundos: com um metro de altura, sentada no carpete da sala da minha mãe, contemplando a capa dos vídeos VHS, enrolando os dedos na microvagininha. Me demoro num filme pornô (poderia ser um romance dantesco). Um casal se beijava, um na boca do outro, sinto uma eletrocutada me invadir. Minha segunda tentativa de transa, com um professor de filosofia que declamava Nietzsche no ouvido enquanto cutucava meu hímen (um papo bem broxante de Zarathustra), eu seca como um areal, assada. Ele diz qualquer coisa de ateísmo, me aperta a teta e eu molho. Passou pela cabeça o dia que saí de casa, um porre específico de destilado que tomei, um banho de banheira imaginário, saudades do meu pai, uma porção de coisas. Quando acabou eu estava deliciada.

Voltamos o caminho inteiro em silêncio. Nunca fomos de conversa, mas havia quase cumplicidade no ar. Ele zombava de mim, tinha algo próximo de um sorriso no canto da boca, sabia que eu estava absolutamente confusa. Entrei no meu quarto pela última vez. Ele entrou, sentou-se ao meu lado por um respiro e abruptamente montou-se sobre mim, amassando minha barriga. Eu não conseguia respirar. Debatia-me, asfixiada, ele bradava palavras de ordem, dizia que me acalmasse. No instante que a cabeça cogumelosa daquele pau encostou em mim, antes que eu mesma desse a conta, puxei a faca por debaixo do estofado e lhe cortei a garganta. Sentei por cima dele e serrei aquela cabeça para fora do pescoço, enquanto ele dizia: Não vá me fazer arrepender de te ter acolhido! 

sábado, 14 de maio de 2016

Capítulo 2


No primeiro momento me depilaram. Antes mesmo que eu fosse atendida pelo Doutor, dois estagiários me meteram numa banheira de cera e passaram o quarto de hora seguinte destacando todos os meus pelos. Não poderiam me matar - eu filosofava - pelos motivos de politicagem internacional, mas me arrancavam os pedaços que consideravam dispensáveis. Não era doloroso, eu pouco me importava, mas ao ver os pedaços de fita felpuda caindo ao chão, me sentia, ali sim, cada vez mais nua. No entanto compreendia. Não me aceitavam, não aceitariam os pedaços de mim.

Fui muito elogiada pelo Doutor, estava em boa forma. Elogiou a mucosa da minha vagina e o controle do meu esfíncter, ficou extremamente impressionado com o pH recolhido, enfim, eu sabia que ele colocaria um filho dentro de mim. Ele me perguntou se eu casaria nos próximos dois dias. É uma tática comum: as mulheres arranjam maridos e engravidam civilizadamente. O governo ainda não declarara guerra ao amor, aparentemente. Meu problema com essa técnica é que não havia maridos em quem pudéssemos confiar.

Deitaram-me em uma maca e eu arregacei as pernas. 
Gravidez, para mim, tem cheiro de látex. Luva de petróleo, seringa, papanicolau. Há um incômodo como que no céu da boca do útero. Cortam-me de dentro para fora, tudo minucioso, dobram o envelope da minha barriga para o lado, num pregador de roupa, introduzem-se ali dentro, instalam uma bolsinha de carga genética e me costuram de volta. Eu estava marcada e iniciada, com uma cicatriz de meia lua no baixo do ventre salpicada pelos pontos.

Saindo da consumação, passei em frente ao quartel general. Pelo som do silêncio eu sabia que era ali que eu estivera e era justamente onde Mãe estava. Era a única ocupação militar a menos de vinte minutos da casa e, por mais que estivesse vendada quando me removeram dali, a luz do sol entrava pelos poros nanométricos do pano e eu tinha a referência solar: a casa do Homem estava a vinte minutos da Mãe.

Como eu entraria ali? Eu pensava enquanto o Homem entrava no meu quarto. E mais, como sairia? Ele desabotoou as calças e as estendeu na janela. Eu poderia procurar me armar e provavelmente morrer numa missão suicida para resgatar Mãe, mas - ele malhava o pênis nas mãos para inflar o sangue - de que adiantaria a intenção? Enfiou tudo dentro da minha boca, engasguei ali por alguns minutos, pensei que poderia ir até o quartel e tentar advogar em causa dela, mas tenho certeza que isso configuraria subversão. Me disse que engolisse. Talvez não houvesse nada que eu pudesse fazer. 

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Capítulo 1

Está aberta a quadragésima sexta comissão de julgamento e determinação de tortura apropriada no caso de infratores do plano de ordem e progresso vigente. Isso quer dizer, eu sentava algemada à cadeira de campanha, do lado de fora da sala do tribunal, aguardando minha vez. Ao meu lado, em ordem cronológica, uma senhora preta órfã de filho, dois pederastas, homossexuais, um rapaz chupado, tísico e mais uma corja de criminosos que a minha vista periférica não alcançava. Calculava um tempo de cinco minutos por meliante; eles entravam, eram julgados imediatamente, ocorria o processo de redenção e eles eram retirados pelos fundos. Em seguida entrava o sujeito seguinte. 
Passei pela porta pra dentro de um salão hermeticamente fechado. Perdera o charme duma corte: as paredes brancas, o chão de azulejo recém cheirando a álcool, uma bancada a dois metros do piso e empoleirados nela cento e três juízes de pequenas causas. Não havia nenhum segurança no local, mas eu podia sentir os dardos eletrônicos nas quinas do cômodo seguindo a angulação exata da minha passada. Me movia o menos brusca como possível. 
- Pare aí, exatamente aí! Mulher solteira branca de classe civil mediana, culpada de extorsão do layout visual urbano.
“Culpada”, repetiram os outro cento e dois periquitos.
- Indiciadíssima por formação de quadrilha metafórica, a réu é subversiva, trovadora e possivelmente macumbeira. Há provas irrefutáveis e secretas de sua participação em atividade de piche, monólogo, roda de conversa, tabagismo, uso de máscara, passo de samba e, pasmem, beijo de língua. 
Ordenaram que eu me despisse e lhes mostrasse o cu. Ordenaram que colocasse uma venda e me estupraram, um por um. Não durou mais do que três minutos. 

Acordei em uma sala muito da minúscula, sem iluminação alguma, o chão cimentado. Perdera dois dentes, mas não lembrava de ter apanhado. Sentei-me. Havia uma figura na minha frente. Nos encaramos por uma suspensão de tempo. 
- Você é a pichadora. 
- Você é a mãe solteira.
Nos dávamos muito bem, éramos, as duas, muito silenciosas, ela comia a carne do meu prato e me deixava um resto de arroz para completar a marmita. Quando eu abafava o choro entre os dentes, ela fingia estar dormindo e me deixava em paz. Além disso criamos um sistema de rodízio, quando vinham os homens, uma por vez se posicionava na frente da porta e a outra se escondia com a bênção do breu, atrás da latrina. Dessa forma revezávamos, ninguém era violentada duas vezes seguidas. 

É difícil dizer quanto tempo estivemos ali, em cativeiro. É terrivelmente complexo administrar a corredura do tempo quando não há luz do sol. Algumas vezes, Mãe cortava o silêncio e balbuciava “É lua cheia”, ou coisa do gênero. Seu ciclo menstrual desconsiderava as paredes. Enquanto durou a clausura, Mãe engravidou duas vezes; um tiraram, o outro retirou-se por espontânea vontade. 

Em tal momento, abriram a porta e anunciaram que meu advogado estava ali. A luz que vinha da sala ao lado entrava como tsunami pra dentro do cristalino, bateu a enxaqueca, meu cérebro palpitou. Não permitiram que eu me sentasse. 
- A senhora é uma mulher de muita sorte, sim senhor. Hoje o dia da liberdade! É com sensação de dever cumprido que lhe informo que até o final deste dia, você estará reintroduzida à sociedade!
Tratava-se de um novo método de reabilitação para mulheres (se você já assistiu Laranja Mecânica sabe exatamente ao que me refiro). Pelo menos oitenta por cento das fêmeas brasileiras estavam encarceradas e os geógrafos gerais procupavam-se com a questão demográfica do império. Foram buscar a solução no estrangeiro e ali estava.

Um carro me deixou em casa. Eu não tinha chave alguma, bati à porta. Um homem atendeu. Lhe expliquei a situação: estivera afastada, perdera o contrato do aluguel e, de resto, só queria saber se restava algum dos meus pertences ou alguma compaixão nele que me permitisse dormir ali aquela noite. Combinamos que mediante um boquete esporádico a cama do quarto de hóspedes era minha. Na minha época, ao entrar naquele quarto, me invadia o cheiro de tinta e cera - céus - até mesmo o cheiro do couro da tela, da farpa da madeira do cavalete, o cheiro de aerosol do estêncil guardado nos armários. Havia, agora, cheiro de peido, um sofá-cama e uma televisão. Tomei o primeiro banho da minha vida. Minhas unhas já enrolavam por cima de si mesmas, acuadas. Cortei o cabelo. O Homem me deu uma cerveja e ligamos a televisão.

Eis o método: mulheres figuravam pela tela, todas grávidas, mas, ele me explicou, nenhum bebê nasceria. 
- É o futurismo da focinheira! 
A cada nove meses éramos recrutadas e encubadas. Algumas de nós daríamos a luz aos filhos do estado, ou às futuras parideiras (“Não é comum que permitamos o nascimento de fêmeas, porque levamos em conta a quantidade de revoltosas rebeliosas que fogem aos Palmares da vida e as geram por lá. Além do mais, você sabe quantos filhos uma mulher pode ter na vida? Quer dizer, o controle natalino das novas Mães leva em conta o erro no controle, então baixamos a taxa mensal de permissão infanto-feminina. É economia, você não entenderia”). A maioria de nós carregava uma espécie de software na barriga, um vírus de mimetismo da gravidez. O barrigão estaria ali por nove meses, as dores, a fraqueza e o cansaço. No momento do parto o programa seria removido via cesária e em alguns meses seríamos recrutadas novamente. O xís da questão, o Homem dizia, é que elas não sabem e nunca saberão se há um filho de fato. É a parte mais hilária.


Minha gravidez estava marcada para dali a uma semana. Era mais do que muito tempo para arquitetar o que eu faria. 

domingo, 27 de dezembro de 2015

Curva

Eu havia construído uma máquina do tempo. São relativamente fáceis de confeccionar, bastaram algumas pesquisas ao computador. No cabo de horas, eu parafusava o último fio eletromagnético fulano de tal. Me passou pela cabeça a filantropia de voltar e subornar o aborto da mãe do Hitler, da família Bush, Eduardo Cunha, Judas, pensei em impedir que aqueles aviões decolassem, que o Titanic partisse, pensei no resultado da loteria, nos exames que meu pai devia ter feito, pensei até em entender a construção das pirâmides. Quebrei os miolos nessa reflexão, mas concluí que o desenrolar da bola de neve dos fatos poderia ter consequências excessivamente drásticas e imprevisíveis. Afinal, eu tinha outros planos. Armei a mochila nas costas, girei e virei os botões, pá, pum, estava em nove de novembro do mês passado. 
Encapuzei o rosto e sentei no topo da escada do fumódromo. Assim, ali, eu teria a visão panorâmica. Logo me vejo entrando na festa vazia. Dali de baixo, lanço um olhar para os degraus e de repente, a nós, nos invade a memória ter visto um vulto sentado ao alto. Observei tudo: o instante em que coloquei meus olhos nele e as rondas constrangedoramente indiscretas que eu lhe fazia. Soltei um sorriso manguado enquanto eu mesma espiralava, contentíssima, pelo salão. Será uma pena perder isso. 
Ele não seria o único. Eu voltaria algumas horas atrás, me atacaria com uma pedra no topo da cabeça e, dopada, perderia a hora do momento em que o conhecia. Na volta, seria capaz de sentir-me saqueada e sequelada por outro caso de amor, mas logo chegaria à mesma conclusão da viagem temporal e sairia pelas dobras limpando meu coração. 
Espreitei nosso beijo e desci para a privada, com o estômago embrulhado. Me espremi contra o espelho. Eu era uma assombração do que fôra, os olhos e a boca murchos, quase fechados, secos. Mal me vestia, mal comia, cobria as picadas de seringada no braço e desenvolvera até um diabo dum tique nervoso na pálpebra. Eu devia acabar com aquilo duma vez. Mexi nos botões e caí três dias depois, feito alma penada, voyeur minha e dele, no canto da janela que eu sabia que estaria aberta. Ele desamarrava os fios da minha roupa, me deitava no colchão e desenhava os próprios dedos às costelas na minha barriga. Eu chorava silenciosamente, encostada na parede da varanda, sentindo em mim mesma o aperto da carícia avivada na minha memória. Me bateu uma leve dor cicatrizada no crânio e eu me lembrei porque estava ali. Precisava voltar e arranjar uma pedra. 
Desembarquei no terminal do aeroporto, enquanto ele me despachava (à outra), e prometia que logo, em dias, iria me ver. Eu fui, ele ficou, deu a partida no volante e seguiu pela rampa, para a desemborcação da rodovia. Eu não consegui lhe tirar os olhos, aquela era a ultima vez que o veria. Nos encontramos pela retina no retrovisor. Eu vi a confusão se colonizando da cabeça dele, o pavor. Enquanto virava o pescoço para conferir o que pensava enxergar (a mim, duplicada, novamente), despencava pelo viaduto. No meu transe, me dei a conta que não havia turismo no tempo. A morte dele eu causara por ter causado. Isso já não seria mudado, já havia acontecido em meu nome. Até que passasse aquele mês de volta ao presente, eu permaneci sentada, tremelicando, no meio fio do Galeão. Hoje darão pelo meu desaparecimento. Daí em diante, de nada mais lembro.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

À vó

Joana Negreiros era o nome da minha avó materna. Até esta manhã ela ainda era teoricamente viva, ancorada em todo tipo de artifício tecnológico e entubador que mantivesse seu corpo operante e sua cabeça vazia. Minha vó artista viveu uma parábola (um trecho de montanha russa) com a degradação cachacenta do Alzheimer, do Parkinson, do que tinha direito, mas com um início fabuloso, extremamente mentiroso, todo legendário. Quando escrevo para ela e sobre ela, preciso mantê-la como terceira pessoa. Como um personagem que eu ponho em apresentação: minha vó que não está nem cá nem lá. 
Ela tinha uma mãe branquinha, mirradinha, habitante do Amazonas. Viu minha vó crescer em oca e mandioca. As últimas palavras da Joana foram uns “mamães” de partir o coração. Já crescida, a caminho de Manaus, minha vó conta que o avião caiu e não sei quantas pessoas morreram. Mas ela não, porque era durona e mais: não tinha o menor medo de voar. Eu tenho. Um pavor. Um colapso. Fosse menos instruída na arte do autocontrole, seria a pior companhia aeroviária. Eu que já choro e, semanas antes da viagem, já carrego a certeza da minha morte eminente. Não entro em uma sala de embarque sem todo um ritual de reza ateísta e despachamento espiritual. Já em Manaus, ainda conta a minha avó, foi quando conheceu Che Guevara. Bati os dados historicamente: o sujeito esteve no Norte do Brasil na época. Não estou me proclamando neta distante de revolucionário pseudo cangaceiro nenhum, longe de mim. 
Ela amava o Rio de Janeiro. Ainda está lá, em casa. Minha vó foi artista plástica, bem da boêmia. Pintava retratos por encomenda, sentada na frente do cavalete, segurando a foto em questão numa mão e na outra um pincel fininho. Mas sua escola eram os temas indígenas. Enchia as paredes com primeiras missas, talhava os armários de floresta amazônica, metia arara, mamilos, pézinhos e urucum onde houvesse espaço. Foi casada, divorciada, abandonona, fez quatro filhos e meio, um mais lindo que o outro. Assim que eu nasci, minha vó me pegou dos braços da enfermeira e foi tratar de meter dois brincos, um em cada orelha. E era assim que eu já estava quando minha mãe me amamentou pela primeira vez. Daí em diante, parece que nunca me entendi com os santos dessa mulher. Ainda muito pequena, descontrolada, vivia fazendo caretas para a Joana. Não gostava da forma como ela me olhava e nem de quando encostava em mim. Eu sabia que ela explodiria a qualquer momento. 
Ela nunca ficava doente. Um dia bateu uma febre, enxaqueca, gripe, tudo duma vez, minha vó, índia por dentro, branca por fora, voltou pra aldeia e foi ter com o pajé. Após um nada de exame ele perguntou se ela gostava de tartaruga. Ela amava tartaruga: frita, assada, crua talvez, com pimenta do reino, bem salgada, acompanhada dum licôr. Mas a tartaruga em questão deveria ser criada. Assim, Joana, sei lá como, meteu um bicho na bolsa, voltou pro Rio de Janeiro e largou a fulana no chão de taco do apartamento de Copacabana. Dali em diante, sarou. Sarou sentada, metendo pedacinhos de mamão e couve na boca das bichinhas (no plural, porque até o fim, conto quatro ou cinco). 
Disse-me uma vez que havia encontrado o Papa, reunido-se com ele, conversado um tanto. Neste ponto da minha adolescência, já não levava fé em nada nela. Aos 70 anos pulou da ponte amarrada por uma corda, mas naquele tempo que minha vó vinha nos visitar, sentava em frente à TV e chantageava a empregada para que fosse ao mercado comprar umas cervejas. Era assustador vê-la bêbada. Minha vó era muito agressiva e muito vaidosa. Adorava batom. Vestia-se como eu me visto. Frequentava a casa do Chico Buarque. Redundante: eu sou minha avó. Guardadas as devidas proporções. 
Ela já estava infantilizada, presa numa clínica, pintando quadros tenebrosos que regrediram a colagens em folhas A4, o próprio nome, rabiscos e nada. Um dia, com a minha prima, limpando o sebo dos armários, encontramos a tal foto da minha avó com o Papa João Paulo II. Ela estendia uma moldura imensa em que ele rezava a primeira missa. Ele sorria, eles conversavam sobre o quadro e ele posava para o retrato. Mas naquele ponto, ainda que eu quisesse, não arrecadaria mais história nenhuma pra contar. Fosse cabeluda do jeito que fosse. 
Nos saltos das gerações, acho que minha vó encarna cada vez mais em mim, conforme descarna de si. Minha mãe sabe e vê. No entanto, o que quero deixar registrado: este pensamento, antes, me provocaria arrepios. Não mais. Quero que ela seja muito bem vinda. 

Pintura da vó