domingo, 27 de dezembro de 2015

Curva

Eu havia construído uma máquina do tempo. São relativamente fáceis de confeccionar, bastaram algumas pesquisas ao computador. No cabo de horas, eu parafusava o último fio eletromagnético fulano de tal. Me passou pela cabeça a filantropia de voltar e subornar o aborto da mãe do Hitler, da família Bush, Eduardo Cunha, Judas, pensei em impedir que aqueles aviões decolassem, que o Titanic partisse, pensei no resultado da loteria, nos exames que meu pai devia ter feito, pensei até em entender a construção das pirâmides. Quebrei os miolos nessa reflexão, mas concluí que o desenrolar da bola de neve dos fatos poderia ter consequências excessivamente drásticas e imprevisíveis. Afinal, eu tinha outros planos. Armei a mochila nas costas, girei e virei os botões, pá, pum, estava em nove de novembro do mês passado. 
Encapuzei o rosto e sentei no topo da escada do fumódromo. Assim, ali, eu teria a visão panorâmica. Logo me vejo entrando na festa vazia. Dali de baixo, lanço um olhar para os degraus e de repente, a nós, nos invade a memória ter visto um vulto sentado ao alto. Observei tudo: o instante em que coloquei meus olhos nele e as rondas constrangedoramente indiscretas que eu lhe fazia. Soltei um sorriso manguado enquanto eu mesma espiralava, contentíssima, pelo salão. Será uma pena perder isso. 
Ele não seria o único. Eu voltaria algumas horas atrás, me atacaria com uma pedra no topo da cabeça e, dopada, perderia a hora do momento em que o conhecia. Na volta, seria capaz de sentir-me saqueada e sequelada por outro caso de amor, mas logo chegaria à mesma conclusão da viagem temporal e sairia pelas dobras limpando meu coração. 
Espreitei nosso beijo e desci para a privada, com o estômago embrulhado. Me espremi contra o espelho. Eu era uma assombração do que fôra, os olhos e a boca murchos, quase fechados, secos. Mal me vestia, mal comia, cobria as picadas de seringada no braço e desenvolvera até um diabo dum tique nervoso na pálpebra. Eu devia acabar com aquilo duma vez. Mexi nos botões e caí três dias depois, feito alma penada, voyeur minha e dele, no canto da janela que eu sabia que estaria aberta. Ele desamarrava os fios da minha roupa, me deitava no colchão e desenhava os próprios dedos às costelas na minha barriga. Eu chorava silenciosamente, encostada na parede da varanda, sentindo em mim mesma o aperto da carícia avivada na minha memória. Me bateu uma leve dor cicatrizada no crânio e eu me lembrei porque estava ali. Precisava voltar e arranjar uma pedra. 
Desembarquei no terminal do aeroporto, enquanto ele me despachava (à outra), e prometia que logo, em dias, iria me ver. Eu fui, ele ficou, deu a partida no volante e seguiu pela rampa, para a desemborcação da rodovia. Eu não consegui lhe tirar os olhos, aquela era a ultima vez que o veria. Nos encontramos pela retina no retrovisor. Eu vi a confusão se colonizando da cabeça dele, o pavor. Enquanto virava o pescoço para conferir o que pensava enxergar (a mim, duplicada, novamente), despencava pelo viaduto. No meu transe, me dei a conta que não havia turismo no tempo. A morte dele eu causara por ter causado. Isso já não seria mudado, já havia acontecido em meu nome. Até que passasse aquele mês de volta ao presente, eu permaneci sentada, tremelicando, no meio fio do Galeão. Hoje darão pelo meu desaparecimento. Daí em diante, de nada mais lembro.