quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Resiliência

Ser teu pão, ser tua comida, ser edredom, televisão, atrição e abridor de latas. Ser bumerangue, vale-transporte, mordaça, tentativa e erro. Ser o desassossego dos dias ímpares, do desvairamento, do mal entendido, das malas feitas que são só ameaça, são bandeira branca, a elas seguem-se os dias de trégua, de sodomia e de bomba relógio. Ser nosso manicômio, nosso matrimônio, nosso sedativo, o diagnóstico do alcoolismo e da solidão, da solicitude, da soldadura e do solavanco. Ser a continência diária e religiosa de misturar meus beijos nos seus, colar seu corpo no meu e enredar e algemar e cingir, enlear e firmar o laço das minhas pernas ao redor das suas costas. Esmiuçar o coração. Espremer o suco de limão. Resistir e ocupar.

domingo, 29 de setembro de 2013

Você prepara a cama como se estendesse a passarela da igreja, como se levantasse um teto encima das nossas cabeças. Pousa um beijo em mim. Atira longe meus sapatos. Meus retalhos. Meus nãos. Os balões sobem pelo céu da minha boca, caem, abrem trilhas dentro de mim, a ponta dos dedos segue o caminho, pé ante pé, desbravando, plantando alface, subindo muro. Separa as minhas pernas, me enterra os dedos, os dentes e as pupilas. Eu escorrego nos seus braços, a gente se enrosca, se enrola, dá um nó, solda tudo, morre no bocejo, na fumaça, na madrugada, na TV ligada, no respingo da água na louça que molha minha barriga. Eu morro todos os dias com a orelha colada no seu coração, ressuscito de madrugada nas manchas que escorrem do suco de manga. Eu morro de amor todos os dias.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Quando ela chegou - e ele sentiu sua aproximância - a recebeu como uma velha amiga, de braços abertos, paralisados. Tinha para si que a primeira providência a ser tomada fora daquele intumescimento de corpo seria dançar. Seria amarrar os cadarços, limpar as orelhas, coçar as costas. Caprichos da vida, não faz mal. Faria o que lhe fosse permitido. Mas o faria espalhafatosamente.
A kriptonita estava instalada dentro do próprio corpo. Aprisionado. Encarcerado. ELA era camisa de força, máscara de ferro, tetraplegia. Liberdade é se descarregar do fardo cimentado que é cabeça, fígado, escroto, coração. Liberdade é quando cessa a pulsação. Pára corpo, pára luz e pára a mente. Liberdade é quando caem os cabelos, as entranhas apodrecem, fica o vazio do som da própria voz (como era sua voz?). Vira-se memórias de si mesmo. As memórias próprias e dos outros. Liberdade é tal como dormir, espairecer, como deitar no chão, olhos fechados, anestesia consentida.
Tivera o tempo infinito. O rancor infinito. As pragas ecoaram dentro de si - “por que eu?” -, agora passadas, transitórias, misteriosos e retóricos vãos. Não era nada pessoal. Antes fosse.
No meio do recheio do raciocínio, fim. Morreu. Virou pássaro. Vai em paz.




sábado, 29 de junho de 2013

No fosso do poço. No amordaço do turbilhão de nada. No espaço vazio entre minhas orelhas. Lá mora o tique taque imensurado que é espera. O tempo todo de uma vida que é parte desperdício e parte perda. Parte desgosto, parte parede rebocada em volta de mim. Sou inteira preguiça, destrutiva, amarga, cabeça velha, oca, cansada. E tem mais. Esgotada. Sou insolucionável. Só. A ansiedade vira pânico no embrulho do meu estômago. Eu arrasto meu peso pelos cômodos, abrindo e fechando as janelas, a torneira e a porta da geladeira. Eu estou perdida, mas principalmente impaciente. Uma vida de apatia é fardo sem alça demais. É uma enorme caixa de mudança. Me entupo de distrações para levar a vida adiante, seguir esperando, morrer tentando.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Sem mais delongas, vem pra cama

Aqui. Achei. São essas as coordenadas de mim em que eu tenho o mesmo cheiro que você. Tenho o maior receio do mundo de me mexer, pegar a caneta e o papel pra anotar a ideia da imagem. Não quero perder o ponto. Não quero tirar o bico do nariz desse chumaço de cabelo. Do cheiro de sofá. Parece que eu te tenho aqui, com os olhos quase completamente fechados, levantando a minha blusa. Deslizo o pé pra dentro da coberta e o cheiro já some. Volta e meia e ele volta. O cheiro de orelha. Sou percorrida, pernoitada pelo nó dos seus dedos. Acabou que traguei o cheiro todo. Me restou eu mesma. Me restou cheiro de hidratante, de condicionador, de ácaro, de pasta de dentes. Cheiro de contagem regressiva. Cheiro de cinzeiro pro seu cheiro de cigarro. Sou pra você se encaixar em mim - coisa de vocação.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013


Você desarruma tudo em mim, funciona como uma multidão pisando no meu peito, empestando minha casa com seu cheiro, arrastando os pés pela madrugada. Deita as costas na parede, já por volta das cinco, o cigarro flutuando na boca, desliza a mão por entre os meus dedos e junta a ponta do nariz com a minha orelha, daí o tiroteio do suspiro que vem do umbigo. Daí a badalada, o atropelo, a declaração, a ferocidade dos beijos, dos beliscos, o coquetel de hormônios, o meu desespero de te querer aqui e agora, de olhos vermelhos, sem camisa, pendurado no parapeito, esticando as histórias e me enchendo o estômago. Daí a imensidão do tamanho, do tempo que demora, da pedra do Arpoador e dessas pupilas. Se enrola em mim, se amarra em mim, justo em mim, se demora o máximo que puder. Se cuida.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A gente se encontra, garoa um na janela do outro, isso e aquilo, mas se a paciência finda é fim pra mim e é fim pra você.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Patrão,

Vive-se bem aqui. A pão e leite. A trêm de hora em hora pra Ubatuba. À sopa fervente, descente pela garganta tal qual aconchego. Mas é brejo. Coração manda-chuva, eu a-Deus-dará, desempregada, uma pontada de dôr-de-dente no fundo do estômago, minhas medalhas, orgulhosa, ornamentada, cansada, postada de cócoras, a cabeça entre os joelhos, dona de coisa nenhuma, repetitiva. Desde que o samba é samba, é assim. Eu sinto coisas que ninguém mais sente, planto margaridas, floresce tabaco. Mas não é por isso que você vai se livrar assim não, facinho assim não, fluido assim não, vai penar, quero só ver fugir da minha mandinga, esfoliar o cheiro do meu xampu do seu lençol, da sua casa, da cidade inteira. Te amordaço, te mato, te amo. Sou enlouquecida, tô que faço tudo por você, uma otária, amasiada, conjugada, rota de ciúmes. Endividada, mas principalmente inválida, estirada na sua cama há dias, descalça, amarrada pelos cabelos no travesseiro, seu sopro secando o suor, uma estrela em cada olho, uma Lua, cauda de gelo, um farol, comendo seu sorriso com o meu, minha unha transeunte, cortada no talo, no seu peito, desembaraçando as costelas e as mechas. Quero ver quem me tira daqui. Faço um bico deste tamanho, me agarro nas pernas da mesa, boto fogo em tudo. Quero ficar. Contigo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Conjuntamento:

A vastidão e a quentidão que são suas costas deslisando pelos meus dedos, os pés embaraçados, o desarranjo da casa inteira. Atravessamos o tempo de ponta a ponta, deixamos nossa circunferência no tapete da sala. O marasmo. A goiaba. O cheiro do cigarro. Mesmo quando você não está. Mesmo que ninguém mais sinta. Eu saia abrindo as janelas, tentando entender: o chão gelado da cozinha, como é que eu não precisava de mais nada? Puxava um suspiro colado na sua nuca, me apropriava do cheiro até engasgar de ocitocina. A pressão baixíssima. Do mesmo tamanho da covardia, teci um empaixonamento tal que não sobra querer pra mais nada. Sou velha, minhas artérias não se aguentam, eu bem que avisei, vou infartar. Um dia desses, enquanto eu puxo os seus cabelos, a aspiração vai descer pro coração, vai me dar um sopro, uma bolha de ar, eu vou acabar morrendo. Uma inevitabilidade, paciência. Estou vivendo um tu-centrismo perpétuo, glorioso, uma maresia, um estrago, um mimo, os rostos colados, um silêncio ecoando dentro de mim (a martelada no peito), a televisão ligada, seu sorriso feito deboche. Me rendi. Decidi que percebi: só ilustro nós dois em forma de substantivo.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Eu tô querendo cair nos seus braços. Descamisado. Meliante. Eu tô querendo ser aquele violão. Xiitamente, meticulosamente, os olhos opacos, a gasolina e a faísca. Eu quero ser THC na sua boca, quero te tirar pedaço, morar na sua cama, o degradê da gripe, os pés limpos de tão velhos que estamos, a coluna curva na fôrma do sofá. Quero morrer de você, de supetão e batom no nariz. Quero me empanturrar, quero te enciumar, eu e tu. Somos o sossego, o mormaço saindo pela persiana, o céu enorme. O coração louco de pedra, molenga, liquidado, mulherengo e ingrato. Meu lindo. Meu amor. Tenho cá pra mim que agora sim. Agora o banheiro alaga, e mais, você me rouba o lençol todo, a sua silhueta na frente da televisão, que fome, sua boca de homem, você me puxa pela perna, o sorriso comprido, esse tanto de mosquito, a má acostumância se mudou pra dentro de mim. Fica a mansidão, a roxidão, ficamos nós dois. Eu fico esperando a desordem diária de te ver. Eu morro de saudades, de certezas, morro de amor, eu bebo tanto... É efeito da paz. Da impaciência.