quinta-feira, 12 de maio de 2016

Capítulo 1

Está aberta a quadragésima sexta comissão de julgamento e determinação de tortura apropriada no caso de infratores do plano de ordem e progresso vigente. Isso quer dizer, eu sentava algemada à cadeira de campanha, do lado de fora da sala do tribunal, aguardando minha vez. Ao meu lado, em ordem cronológica, uma senhora preta órfã de filho, dois pederastas, homossexuais, um rapaz chupado, tísico e mais uma corja de criminosos que a minha vista periférica não alcançava. Calculava um tempo de cinco minutos por meliante; eles entravam, eram julgados imediatamente, ocorria o processo de redenção e eles eram retirados pelos fundos. Em seguida entrava o sujeito seguinte. 
Passei pela porta pra dentro de um salão hermeticamente fechado. Perdera o charme duma corte: as paredes brancas, o chão de azulejo recém cheirando a álcool, uma bancada a dois metros do piso e empoleirados nela cento e três juízes de pequenas causas. Não havia nenhum segurança no local, mas eu podia sentir os dardos eletrônicos nas quinas do cômodo seguindo a angulação exata da minha passada. Me movia o menos brusca como possível. 
- Pare aí, exatamente aí! Mulher solteira branca de classe civil mediana, culpada de extorsão do layout visual urbano.
“Culpada”, repetiram os outro cento e dois periquitos.
- Indiciadíssima por formação de quadrilha metafórica, a réu é subversiva, trovadora e possivelmente macumbeira. Há provas irrefutáveis e secretas de sua participação em atividade de piche, monólogo, roda de conversa, tabagismo, uso de máscara, passo de samba e, pasmem, beijo de língua. 
Ordenaram que eu me despisse e lhes mostrasse o cu. Ordenaram que colocasse uma venda e me estupraram, um por um. Não durou mais do que três minutos. 

Acordei em uma sala muito da minúscula, sem iluminação alguma, o chão cimentado. Perdera dois dentes, mas não lembrava de ter apanhado. Sentei-me. Havia uma figura na minha frente. Nos encaramos por uma suspensão de tempo. 
- Você é a pichadora. 
- Você é a mãe solteira.
Nos dávamos muito bem, éramos, as duas, muito silenciosas, ela comia a carne do meu prato e me deixava um resto de arroz para completar a marmita. Quando eu abafava o choro entre os dentes, ela fingia estar dormindo e me deixava em paz. Além disso criamos um sistema de rodízio, quando vinham os homens, uma por vez se posicionava na frente da porta e a outra se escondia com a bênção do breu, atrás da latrina. Dessa forma revezávamos, ninguém era violentada duas vezes seguidas. 

É difícil dizer quanto tempo estivemos ali, em cativeiro. É terrivelmente complexo administrar a corredura do tempo quando não há luz do sol. Algumas vezes, Mãe cortava o silêncio e balbuciava “É lua cheia”, ou coisa do gênero. Seu ciclo menstrual desconsiderava as paredes. Enquanto durou a clausura, Mãe engravidou duas vezes; um tiraram, o outro retirou-se por espontânea vontade. 

Em tal momento, abriram a porta e anunciaram que meu advogado estava ali. A luz que vinha da sala ao lado entrava como tsunami pra dentro do cristalino, bateu a enxaqueca, meu cérebro palpitou. Não permitiram que eu me sentasse. 
- A senhora é uma mulher de muita sorte, sim senhor. Hoje o dia da liberdade! É com sensação de dever cumprido que lhe informo que até o final deste dia, você estará reintroduzida à sociedade!
Tratava-se de um novo método de reabilitação para mulheres (se você já assistiu Laranja Mecânica sabe exatamente ao que me refiro). Pelo menos oitenta por cento das fêmeas brasileiras estavam encarceradas e os geógrafos gerais procupavam-se com a questão demográfica do império. Foram buscar a solução no estrangeiro e ali estava.

Um carro me deixou em casa. Eu não tinha chave alguma, bati à porta. Um homem atendeu. Lhe expliquei a situação: estivera afastada, perdera o contrato do aluguel e, de resto, só queria saber se restava algum dos meus pertences ou alguma compaixão nele que me permitisse dormir ali aquela noite. Combinamos que mediante um boquete esporádico a cama do quarto de hóspedes era minha. Na minha época, ao entrar naquele quarto, me invadia o cheiro de tinta e cera - céus - até mesmo o cheiro do couro da tela, da farpa da madeira do cavalete, o cheiro de aerosol do estêncil guardado nos armários. Havia, agora, cheiro de peido, um sofá-cama e uma televisão. Tomei o primeiro banho da minha vida. Minhas unhas já enrolavam por cima de si mesmas, acuadas. Cortei o cabelo. O Homem me deu uma cerveja e ligamos a televisão.

Eis o método: mulheres figuravam pela tela, todas grávidas, mas, ele me explicou, nenhum bebê nasceria. 
- É o futurismo da focinheira! 
A cada nove meses éramos recrutadas e encubadas. Algumas de nós daríamos a luz aos filhos do estado, ou às futuras parideiras (“Não é comum que permitamos o nascimento de fêmeas, porque levamos em conta a quantidade de revoltosas rebeliosas que fogem aos Palmares da vida e as geram por lá. Além do mais, você sabe quantos filhos uma mulher pode ter na vida? Quer dizer, o controle natalino das novas Mães leva em conta o erro no controle, então baixamos a taxa mensal de permissão infanto-feminina. É economia, você não entenderia”). A maioria de nós carregava uma espécie de software na barriga, um vírus de mimetismo da gravidez. O barrigão estaria ali por nove meses, as dores, a fraqueza e o cansaço. No momento do parto o programa seria removido via cesária e em alguns meses seríamos recrutadas novamente. O xís da questão, o Homem dizia, é que elas não sabem e nunca saberão se há um filho de fato. É a parte mais hilária.


Minha gravidez estava marcada para dali a uma semana. Era mais do que muito tempo para arquitetar o que eu faria. 

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