domingo, 15 de maio de 2016

Capítulo 3

Eu precisava de dinheiro para, evidentemente, sair dali. Ninguém me empregaria e o Homem passava dos limites, vinha duas, às vezes três vezes por dia. Eu passava as tardes fora de casa, andava muito em redor do quartel e numa dessas descobri um pequeno quiosque de batata frita onde trabalhava um moleque. Ele estava sentado numa cadeira desmontável, com uma faca na mão cortava em quartos, como uma maçã e jogava os pedaços com casca, verruga, terra e tudo no óleo velho. De início não me deu bola, mas quando eu me ofereci para ajudar no serviço (assim a sacola acabaria mais rápido, a batata queimaria duma vez e todos iríamos para casa), ele levantou-se, me ofereceu o assento e observou o que eu fazia. O toque do corte em palito ou em lâmina já estipulou um novo padrão de qualidade naquela birosquinha. Acabamos o trabalho, eu guardei no bolso três batatas e a faca. Ele me perguntou se eu voltaria no dia seguinte. 

Descasquei metade da batata, firmei a pinça dos dedos na ponta da faca e esculpi uns pedaços de amido, desvendando a forma de flor por dentro do mármore. Fazer tinta é simples: redemunha farinha, água, sabão e a cor - pode ser pétala, terra ou reboco rapado das paredes, veja um tom e tente se apropriar dele, dichava e mistura. Comecei carimbando as paredes do quarto, a imagem final era um grande navio feito de pequenas flores, num horário de outono e pôr do sol. O Homem aprovou e eu fui à rua. Muito atenta à polícia, mesmo que munida apenas de tubérculo, no passo de quatro meses montei mais de cem murais de barco, arquitetura, retrato, história em quadrinhos, nem sei. Quem passava atirava uma moeda e a chuva seguinte limpava o desenho. Ali, quatro meses depois, com a barriga à mostra, eu juntara dinheiro o suficiente para um mês de aluguel. 

O Homem quis me presentear na despedida. Pegamos um ônibus e saltamos no rancho. Ele alugou dois cavalos, ao vê-los senti uma pequena contração no bucho. Me ajudou que eu subisse e disparou na frente, deixando-me só. Fiquei ali, como uma imbecil, por alguns momentos, imóvel. Segurei-me e nos impulsionei para frente. Não funcionou. A cinética não funcionou, mas uma outra coisa sim. Justamente o que você está pensando. Fiz outra tentativa. Dessa vez tudo funcionou -  tudo - o cavalo deu uma passada, depois outra e disparou, contornando o interior da arena. Caso eu não acompanhasse o equilíbrio do trote da cavalgada, eu sangraria e abortaria, uma meleca. Daí, então, me esfregava contra a costura da calça, o bebê dentro de mim chacoalhava e a massagem subia até o topo da moleira da minha cabeça.    

Achei que morreria. Depois de tudo pelo que passei, naquele momento, com os lábios latejando, achei que fosse o fim. Passou muito pela minha cabeça, durou dez segundos: com um metro de altura, sentada no carpete da sala da minha mãe, contemplando a capa dos vídeos VHS, enrolando os dedos na microvagininha. Me demoro num filme pornô (poderia ser um romance dantesco). Um casal se beijava, um na boca do outro, sinto uma eletrocutada me invadir. Minha segunda tentativa de transa, com um professor de filosofia que declamava Nietzsche no ouvido enquanto cutucava meu hímen (um papo bem broxante de Zarathustra), eu seca como um areal, assada. Ele diz qualquer coisa de ateísmo, me aperta a teta e eu molho. Passou pela cabeça o dia que saí de casa, um porre específico de destilado que tomei, um banho de banheira imaginário, saudades do meu pai, uma porção de coisas. Quando acabou eu estava deliciada.

Voltamos o caminho inteiro em silêncio. Nunca fomos de conversa, mas havia quase cumplicidade no ar. Ele zombava de mim, tinha algo próximo de um sorriso no canto da boca, sabia que eu estava absolutamente confusa. Entrei no meu quarto pela última vez. Ele entrou, sentou-se ao meu lado por um respiro e abruptamente montou-se sobre mim, amassando minha barriga. Eu não conseguia respirar. Debatia-me, asfixiada, ele bradava palavras de ordem, dizia que me acalmasse. No instante que a cabeça cogumelosa daquele pau encostou em mim, antes que eu mesma desse a conta, puxei a faca por debaixo do estofado e lhe cortei a garganta. Sentei por cima dele e serrei aquela cabeça para fora do pescoço, enquanto ele dizia: Não vá me fazer arrepender de te ter acolhido! 

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