sexta-feira, 24 de abril de 2015

Sobre depressão - primeira parte, ainda inconclusiva

Contávamos dezessete noites consecutivas desde o último pôr-do-sol. O frio engolidor nos tocava, uns pra dentro das casas, outros pra debaixo das terras. Esmurrava a porta, nos puxava as meias e se coalhava em gotículas de gelo nos cantos da boca. Em pouco não restaria nada, nem edifícios ou pirâmides, nem contratos de guerras, não sobraria uma geladeira por cima de um ladrilho, não haveria um origami na prateleira.

Mexericando isso, eu escorria pelo sofá, com os olhos aguados beirando a abertura da compota. Sinto toda a falta das manhãs e dos ruídos, das colorações dos fins de tarde, da fruta no pé, dos óculos escuros, de tudo, claro, mas não era este o problema. Insolucionável, como estava, sequei os olhos (perpetuamente) e, por força do hábito fui até a cozinha, para abrir e fechar os armários.

Todo tipo de coisa acontece no fim do mundo. As inúmeras sete bilhões de solidões se colocam em órbita. O telefone cacareja todo dia. Há muitas ligações silenciosas. Não há pássaros. Dorme-se muito. Todo tipo de ser com tamanho modesto invadia as covas de habitação e, naquele momento, me dei com uma milícia de formigas, ocupando-se da pia do banheiro. Não me cabia, no entanto, a hecatombe homicida de abrir a avalanche da torneira por cima delas. Não me fazia sentido. Eu e elas éramos questão de tempo.  

Em dias, as luzes desligaram. Desligou também o aquecedor e a descarga congelou. Encaixotei as parafernálias eletrônicas e as despachei no corredor do prédio. O silêncio imperava numa viuvez familiar. Nada de sussurro eletrostático. Nada de bisbilhotagem forasteira. Só eu. Só.