quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Ruivo do ônibus (2009),

Eu só queria contar ao mundo que tomei uma atitude impulsiva e inusitada. Eu, sim senhor.
Oh meu Deus! não sei nem o que pensar.
Definitivamente uma daquelas histórias que no futuro não saberei distinguir se ocorreu ou não.
Ventava tanto, tanto... E talvez seja por isso.
Ou talvez não.
Talvez a necessidadezinha de sentir qualquer coisa me impulsionou. Era a quarta, quinta, vigésima vez que eu entrava no mesmo ônibus que ele. Agarrei um papel e o entreguei com meu telefone. As primeiras palavras que trocamos foram "alô" e "alô". Uns "alôs" bem xoxos de quem não sabia o que pensar ou fazer. E agora eu não sei se sinto frio ou borboletas. Não sei que casaco ponho, não sei que livro levo, não sei se ando de um lado pro outro a beber água ou se me alongo.
Óntem a casa parecia tão tão vazia e hoje sinto claustrofobia.
E o que é que eu faço com o meu cabelo?
E essas unhas? Depilo as pernas? Vou de calça?
Meus dedos não param quietos, enquanto eu não estiver escrevendo vou estar... Vou estar... Vou estar... Eu sei lá.
Ônibus laranja, disso eu lembro. Meu coração batia tão forte, tão forte, tão forte. Não por ele, claro que não. Era mais por mim.
Ora, ora, tímida, introspectiva, cagona Helena. Me surpreendi a mim mesma. É isso aí. Muito prazer, eu sou você amanhã.
Sei lá, é como se as palavras parassem de fazer sentido.
E pra onde nós vamos?
E eu vou matar minha aula? Ah, vou, vou mesmo mesmo mesmo!
Estou tão nervosa que meu tique nervoso parou. Digo, voltou. Ou parou. Enfim, ora para ora volta. "Hora"? Vai saber.
Descruzo e cruzo as pernas quantas vezes suporto. Quantos minutos passaram? Quase quarenta.
Gastrite.
Meus neurônios estão dançando um tango argentino totalmente descompassado. Mãos geladas, rosto quente. É, o rosto quente.
Meu Deus, quando atendi o telefone (rapidamentíssimamente para não ter tempo algum de pensar ou surtar ou desafinar) meu rosto estava quente, quente, quente. Não havia saliva, o sangue todinho indo pro rosto, um formigamento no pé em vias de necrosar, uma voz que não era minha, as pupilas do tamanho de um tamarindo. Quarenta e nove segundos. Pareceu-me bem menos.
Alôalôquemé?HelenaAquiéoDiogodoônibusvaifazeroquehoje?Hm.Achoquenada.Quersair?Arãm.Praondevocêquerir?Nãosei,praondevocêquerir?Seilá...Eupossopassaraí,tambémmoronaAsaNorte,aondevocêmora?Centoeseis.Voupassaraíentão,tá?Tábom.Euteligoquandochegar.Beijo.
É. Foi bem menos. Foram uns três segundos, no máximo... E lá se vão minhas unhas. Fico aborrecida, estava n'um ótimo progresso em meu projeto de parar de roer unhas. Paro nada, cada vez que a vida intensifica a situação piora. Vou acabar chegando no meu esôfago assim, sei lá.
E sobre o que nós vamos conversar? Ah, será que eu devia ensaiar?
Parar na frente do espelho, jogar o cabelo pro lado e... Não é como se eu tivesse assunto algum. Acho que ele vai querer saber o motivo por eu ter colado um post-it com o número do meu celular na mochila dele. E qualé o motivo? Não tem motivo. Não há motivo nenhum, veja só. Na hora foi o que eu quis fazer. Na hora... Na hora ele era o rapaz mais bonito da cidade. Na hora eu só queria saber como era a voz dele e queria que ele me contasse algum causo. Na hora queria ver se os cachos ruivos dele eram tão ruivos e tão cachos de mais perto. Na hora eu só queria ver como era o sorriso dele e queria que ele tivesse uma história para contar, queria que ele nunca se esquecesse de mim, queria inspirar alguém, queria sentir meu coração na traquéia até chegar em casa, queria... Queria ter certeza de que eu era capaz, queria tanto, tanto, tanto, que me fez viva. E agora eu estou bem e estou feliz, estou contente, estou intensa... Deu certinho, certinho. Eu fiz para me sentir assim como estou e não para enfiar a lingua dentro da boca de ninguém, nananinanão. Principalmente porque eu não tinha ideia de que ele ligaria de fato. Estava esperando ficar decepcionada e me sentir um lixo, mas não senhor, não, não, ele me ligou! Me ligou e me chamou pra sair! E eu, intensa como estou, vou matar aula por ele. Tá bem, admito, se fosse Sexta, o caso, não abriria mão de forma alguma.
O que me apavora agora é poder encontrá-lo novamente em um ônibus-dois-reais qualquer. Como a gente se trata agora? Bem, em verdade, isso vai depender totalmente de o que ocorre a seguir. Não quero enlace de almas, só quero ver se aquele batuque todo dentro de mim valeu à pena. Uma pena horrível, sabe como é, um sorriso que abraçava a Terra, sei lá. Acho que vou descer pra levar um vento na cara.
E pensar que o movimento dos meus músculos braçais mudou completamente o meu dia. Isso acontece toda a hora, mas só percebi quando ele me ligou. Se eu não tivesse depositado aquele post-it na mochila dele... Aí eu não sei. Aí eu estaria indo para o cursinho. Aí eu teria aula de Biologia. Aí eu compraria dez gomas de mascar e estaria desanimada, desanimada.
E agora cá estou, escrevendo freneticamente períodos sem coorelação semântica, ou sei lá o que. Estou só escrevendo o que vem primeiro ao coração (antes de passar pela cabeça). Estou despreocupada em filtrar qualquer coisinha que venha, estou só escrevendo mesmo pra depois, à noite, voltar e ler. Ler e ler e ler. Por isso tenho que escrever quatrocentas páginas de delírios. Ou devaneios. Ou sei lá o que. Não me sinto preocupada ou abandonada ou rejeitada ou qualquer coisa que seja. Sinto sede, sede, sede, sede. E é assim que eu gosto de mim.
Andarolando e bebendo água.
Ah, é tão bom estar de volta.
Se bem que essa foi a frase perfeita para terminar o texto.
Não tem importância, eu a reescrevo novamente.
Espero ele ligar pra descer? Pra onde vamos? Ah, Helena Impulsiva, me ajude aí, dê uma ideia, uma sugestão... Uma luz!
Está com fome? Mas você sempre está com fome!
Melhor beber água.
Melhor andar de um lado para o outro.
Alimenta a alma.
Não sinto borboletas. Sinto uns gafanhotos com asas de mel. Gafanhoto tem asa? Espero que sim. Dãr, claro que tem. Não consigo pensar direito agora e não vou me desculpar, gafanhoto tem asa sim!
Será que fiz certo?
Minha mãe me mata se descobre!
Mata nada, ela faria muito mais intenso.
Eu sou fracote, sou um zero a esquerda.
Passo a tarde inteira lendo aquela frase que diz que não me arrependerei por nada do que fiz, mas sim pelo que deixei de fazer.
Nunca consigo aplicar, nunca, nunca.
Tenho tantas ideias mirabolantes fermentando na minha cabecinha durante um dia.
Sou consequente (o contrário de inconsequente) demais.
Ah, como eu sinto falta da trema.
Acho que "conseqüente" expressa bem melhor o que eu queria dizer.
Então fica assim, "conseqüente" e pronto.
Ah, como ele demora. Mora aonde? No Riacho Fundo.
Talvez ele também esteja sentindo borboletas.
Ou talvez eu tenha mudado algo pra ele hoje.
Talvez ele esteja hesitante.
Acho bom, acho bonito. Acho intenso, é isso aí, vamos ser intensos e realizar a reforma agrária.
Eu não sei, não sei, estou criando calos de tanto escrever.
As borboletas nem param em mim direito, vêm direto pro teclado. "Vêm" de "vir", eu sei lá se foi certo, não tenho tempo de checar no Google, posso acabar implodindo ou soltando um grito histérico que não me pertence.
Que coisa louca que eu fiz, eim?
Que coisa louca!
Gostaria de voltar um pouco no tempo e contar pra mim mesma a novidade.
Eu ficaria chocada, certamente.
Ficaria chocada e maravilhada.
É o tipo de história que minha avó conta e nós ficamos achando que é prosa de velho.
Sei lá, minha avó tem cada história boa que ninguém presta atenção. Nem eu, sou rabugenta pra caramba. Racional às vezes.
Mas agora quero saber de tudo. Quero saber do Che Guevara e do Papa e do Nicolau II.
Nossa, estou ficando com febre de tanta... Eu sei lá, nem quero acordar agora. Estou desenvolvendo labirintite.
As coisas perdem a profundidade que tinham antes (dimensionalmente falando).
Eu nem olho pro teclado, só escrevo, escrevo e escrevo.
E isso me parece mais que o suficiente.
E ele não chega, já estava até esquecendo, mas que diacho!
Será que ligo pra ele e pergunto se acabou parando em Pedregal?
Pobrezinho, não deve ser bom se perder em Pedregal.
Talvez esse tenha sido um comentário preconceituoso, mas, como disse, não há tempo para pensar, só escrever e escrever e escrever até que novas palavras surjam.
Dei uma pausa de alguns segundos agora.
E está chovendo.
Ah, como ele demora.
Ligo, não ligo? Vou mandar uma mensagem!
E se...
Ah, céus, e se tiver tudo sido um sonho esquisito.
Não, não foi, está aqui nas Minhas Chamadas Recebidas.
Então não foi.
E as borboletas voltam com força total.
E o que eu faço?
Se levantar daqui, vou acabar bebendo mais água e indo até o banheiro e arrumando meu cabelo de novo.
Com mil demônios, isso é muito demais pro meu coraçãozinho.
É nada, Helena, você merece muito mais intenso.
Mereço, mas aguento?
Aguenta sim.
Devo parar de travar diálogos comigo mesma.
Ao invés de me ajudar com a organização do raciocínio, só complica as coisas.
E eu começo a pensar em coisas paralelas que me tiram de onde eu queria estar.
Será que vale mais a pena pegar um ônibus na L2 mesmo ou eu devia pegar no eixo e depois descer? Porque o ônubus da L2 vai pela Esplanada e demora horas e dias e décadas.
Foco, Helena, volte ao ponto.
Morte celular. De celulas, eu digo.
Vou de chinelo mesmo? Choveu tanto, deve ter lama até meu cotovelo lá em baixo.
Bom, eu saberia disso se já tivesse descido.
Ei, será que ele está me dando um bolo?
Será que está zoando com a minha cara e...
Não, gente ruiva não faz isso.
Esse foi um comentário preconceituoso?
Porque, de forma alguma, eu quis dizer que gente ruiva não peida... Gente ruiva faz maldade também, mas eu acho que faz menos.
Ou pode não ter nada a ver.
Nossa... Passou mais de uma hora.
Acho que um astrlopitekus levou ele pra São Sebastião visitar a Lola.
Será que ele gosta de gatos?
Não que isso tenha nada a ver com nada, porque eu não pretendo que ele adote a Lola comigo.
Essa frase não ficou muito bem estruturada, mas dá-se pra entender o que eu quis dizer.
Já chega, vou desenvolver LER.
Vou é descer e pisar na grama.
Isso sim me ajuda a organizar os pensamentos.
Diabo...
Como é bom ser eu mesma (sorriso).

Gustavo,

Redemoinhamo-nos as pernas e caímos estirados no azuleijo do chuveiro.
Ainda que eu me valha de todo o vocabulário deste mundo, meus suspiros engasgados, o coração cacarejante, seus olhos de passarinho, minha cabeça - vazia, vazia - acomodada no seu peito e o sorriso dos meus olhos refletido nos seus, bastarão. Não adiantaria tentar me explicar, antes que eu termine você me aperta contra seu corpo, espalha pólem no meu nariz e minha cicatriz de catapora lateja.
Aí está: eu te amo profundamente.

Gustavo,

Esqueço os olhos em cima de você, me afogando no salpicado de nuvens que nos cobrem, feito talco. Você me toca a pele tão de leve que eu quase não sinto. Arrepio, mas não me movo. Fico cheia do Sol em mim, uma hemorragia de luzes que guardo na boca do estômago de tanto bagunçar a ordem nos pêlos loiros do seu braço. Se eu arranjasse de onde tirar forças, apertava sua mão tão forte na minha, que eu acabaria por quebrar nossos dedos, grudaria seu ouvido no meu coração para que você acreditasse quando eu digo que ele não bate mais, de tão sereno e deixaria a queimadura de mormaço contornar a forma dos seus lábios nas minhas costas.
Suas pernas estendidas têm cor e forma de horizonte e, me parece que quando você senta e olha fundo em mim, sua íris vira mar e grama ao mesmo tempo e, n'um bater de pestanas te sai um som de ré maior acompanhado de sinos. Isso quando você gosta de mim, aliás, porque quando não gosta, fica feio feio. Te nascem umas brotoejas pela cara toda, seu cabelo cria cor de musgo e sua voz não sai direito, parece que fica presa, embolotada em meio a quarenta e cinco quilogramas de carne moída. Já quando gosta, ah, aí você arranja de ter um cheiro tão bom, que eu não deixo de sentir nem quando você vai embora, um sorriso que me arde os olhos e um jeito de pedir pra que eu vá com você que, por nada nesse mundo eu diria não.
Depois do almoço, um pouco antes de dormir, enquanto você ainda sente que eu arranho sua nuca, te saem uns espasmos de quem vai sonhar com coisa boa, vai ter uma epifania e acordar, de boca aberta com uma estrela entrando pela janela, para, na tarde do dia seguinte, por não ter dado um jeito de dormir antes das três da madrugada, deitar em cima das letras de forma no meu caderno de Física. Você sempre tem exatamente o gosto que eu quero sentir e as palavras que eu preciso ouvir (diz mesmo quando não quer). Nunca falha, é como se me jogasse guache vermelha no rosto, uma tarde inteira de sol que cobrisse minhas bochechas. Acaba por me deixar sem jeito, sem ter o que esponder, procurando Chico Buarque para parafrasear quando, na verdade, bastaria dizer tudo aquilo que, por vezes, já ensaiei à frente do espelho. Bastaria, até mesmo, dizer que eu poderia viver naquele momento para sempre... Para ser honesta, seria insuficiente.

Gustavo,

Você me embala n'uma dança ao som de música absolutamente nenhuma, o teto se abre e, acima de nós, a primeira estrela da noite reflete a luz do seu sorriso. Seus dedos gelados desenham uma aurora boreal na minha barriga. A mancha lilás me escorre pela cintura junto a todas as palavras que me faltam e ao espaço vazio entre as minhas orelhas. Meu coração estático, em brasas, meus joelhos estalam ao passo dos meus suspiros e, sempre que nossos olhos se cruzam, um cheiro forte de margaridas. As vezes que piso nos seus pés coincidem com os momentos em que você se põe a carimbar meu rosto com seus beijos. Você prende a respiração; sublima, infla, flutua. Eu prendo minhas pernas ao seu redor, as nuvens arranham de leve minhas costas, levanto fragmentos de Lua com a ponta dos dedos, deitamos, um no colo do outro, das suas mãos em concha você conjura uma gaita (é sempre assim) e me toca a música mais linda do mundo.

Gustavo,

Abrimos frestas pelo quarto inteiro, eu e você, mas, mesmo assim, o calor me manchava a pele. Eu fiz que ia atar o cabelo e você me segurou a mão. Prende não, você fica tão bonita assim. Seus dedos me escorreram, me enlaçaram, me prenderam, enroscaram no meu coração, apertaram tão forte, tão forte, que eu soltei um grito de dor. Dentro de mim ressoava uma música feita de vento, feita d'um sorriso que abraçava o mundo, d'um estalar de dedos e bater de pestanas.
Avancei na sua direção com tantos beijos quanto conseguisse encontrar. Depositei-os, todos, naquelas pintas que parecem constelações nas suas costas. Me subia um mar de amor, um gosto de guache, uma raiva que me transbordou pelos olhos em forma de serpentina.

Gustavo,

Fica aqui registrado que, a partir de hoje, comerei damascos secos todos os dias, para que nunca, nem por um segundo, eu esqueça o gosto que você tem, para que me suba aquele arrepio que nasce no fundo do céu da boca, para que eu me lembre que, de vez em quando seus olhos ficam azuis e eu sinto areia entre os meus dedos do pé. Fico pensando que, se comer tantas estrelas como você, vou acabar com uns olhos bonitos assim (vermelhos, verdes, lilases, nem sei). Penso também, que, meu bem, seu coração consegue bater mais rápido que o meu, mas que meu suor, ao invés de resfriar, me ferve, me prende a respiração e me solta os cabelos. Você guarda no bolso um milhão de coisas bonitas pra dizer, enquanto esquenta os meus pés nos seus. Eu adoro a forma como você termina as minhas frases e, no final, me cobre, dos pés à cabeça, com seu beijo. Eu adoro, mais ainda, a forma como conseguimos ficar calados por horas e como você assobia enquanto anda. Adoro suas mãos nas minhas costas e sua cabeça no meu colo. Adoro como você faz tudo ficar tão, mas tão bem.

Sexta-feira,


Toda sexta feira você entra pela porta, a luz bate na lente dos seus óculos e, é bonito de ver, reflete de volta em mim, parece que me ilumina toda por dentro. Fico vermelha feito morango maduro, minha mão enxarca e os pés ficam gelados. Às vezes que seus olhos param nos meus, é preciso que eu abaixe a cabeça para engolir o risinho ridículo que me sobe pela garganta, mas, não é por mal, acredite, se eu pudesse, sentaria nos seus joelhos e enrolaria uma mecha do seu cabelo no meu dedo, dando um nó cego.
Me demoro tempo demais com os olhos fechados, imaginando que dali a dois minutos ou três, você vai me segurar pelo braço e deixar meu rosto tão perto do seu que eu só consiga ver as cinco cores dos seus olhos. Só e nada mais.
A essa altura começo a embolar as pernas uma na outra, preciso mesmo é interromper o fluxo da minha corrente sanguínea por um momento, ou então meu coração vai escapolir pelo bolso do meu jeans.
Me falta ar, a respiração falha (falhíssima), e eu suspiro - alto demais. Você finge que não percebe, mas te sobe um sorriso no canto do lábio.

Sexta-feira,

Seu cheiro forte de ar-condicionado me toca a garganta, engulo em seco (seu gosto de pavê), meu coração borboleteia, escalo seus pelos eriçados até a lua, fecho os olhos, apuro meu tato, a brisa do seu sopro toca minha nuca, me envolve, seu sorriso estala, sua mão me pesa na anca, a chuva entra pela janela e molha minhas costas, seu beijo, meus dedos, sua barba, meus pés, seus olhos me desnudam, escorre mel pelos meus seios, sua voz me alicia a pele, seu hálito roça meus ouvidos, dos fios do cabelo me sobe uma faísca que vira beijo, vira côr, borbulha, explode, o corpo resfria, a janela bate, meus olhos se abrem, você desaparece.

Alessandro Uccello,

Enfim, entrei. Prendi a respiração e andei até ele, os olhos mareados, uma falta de alguém que nunca conheci. Esparramado na poltrona, imóvel, os cabelos brancos, as mãos rígidas, firmes, o pensamento em... Em qualquer outro lugar. Se pudesse, levantaria a cabeça para me olhar, mas como não podia, abaixei-me.
- É uma honra te conhecer.
Se pudesse, ele sorriria.
Procurei na bolsa - as mãos tremendo - o papel.
- Este é o único poema de que gosto.
Poema é feio. Não tem forma, ocupa espaço demais, transmite mensagem de menos, é conotativo demais, deprimente demais, impessoal demais. Minha mãe estava grávida quando recebeu um. Poema que não era para ela - era para mim. Poema que me deu um nome, me deu uma forma, me deu um espaço, uma mensagem, uma denotação, um coração, uma intensidade, uma sina, um segundo pai.
Ele pegou o papel, com toda a dificuldade do mundo, sorriu com os olhos e apontou para o próprio peito, como quem diz "eu que fiz isso".
"Nana, nenê Nina, nana/ desfruta cada segundo desse teu ventre de Tróia/ bóia em sono profundo, pequenina jóia, nana./ Nasce pequenina, berra/ que o mundo aqui fora é sacana/ filha de mãe espartana, tua sina é ser Helena/ é ser a mais bela e provocar a guerra/ chora, pequenina, berra./ Mama miudinha, mama/ suga essa mãe que te ama/ sente essa mão que te nina/ sonha que és filha de deuses e às vezes minha/ acalenta os sonhos, afasta os demônios, mama. - primeiro de junho de 1993, Alessandro Uccello."
Ao autor, narrador e inventor da minha vida e da minha personagem, um muito obrigada de alguém que gostaria de ter estado por perto antes, com mais tempo, com algo a ouvir e a dizer. Seus poemas me leram por inteira. Isso voltará três vezes mais forte pra você...

Ninguém em particular,


Neli era linda. De todas as mulheres que já vi na vida, ela era a mais linda. Tinha um olhar de flôr, uns olhos do tamanho da lua. Quando a vi pela primeira vez senti vontade de lhe comprar um anel e uma praia. Já Fernando, não posso dizer o mesmo. Às vezes os via de braços dados, mas Fernando nunca fez o que qualquer um de nós faria por ela. Neli era o reflexo do Sol na Terra.
Assim mesmo eles estiveram dez anos juntos e conforme o tempo passava mais adorável Neli ficava.
Todos nós casamos, o mais rico e até o mais feio, mas Fernando não queria casar. Para mim isso era uma afronta. Se Neli fosse minha, eu a emolduraria, lhe daria cinquenta filhas, suas réplicas perfeitas e a levaria para El Salvador.
Aos vinte e cinco ela me disse - e me disse exatamente assim: "Fernando é um doce e ele vai realmente conseguir tudo. Eu não. Não sou assim. Queria me casar. Falei com ele já. Me disse que precisávamos comprar a casa primeiro. Compramos. Agora o carro. Compramos. Depois teremos que ir à Europa. Não quero não, quero casar."
Duas semanas depois, Neli estava com outro. "Nunca pensei nisso, que a poderia perder. Ela era mais parte de mim do que eu mesmo, isso me parecia inconcebível. Ela era minha, só minha..." declamava Fernando. Por três anos ele a amou imensuravelmente e por três anos ele lhe mandou flores, por três anos ele lhe ligou e por três anos Neli ficou com o outro.
Em 1979 me casei pela segunda vez e chamei Neli e Fernando para serem meus padrinhos. Antes do ensaio geral, Fernando entrou na sacristia e agendou uma cerimônia nupcial para dali a dois meses, pagou três mil reais e caminhou lentamente até o meio do salão. "Neli... Daqui a exatamente dois meses eu vou estar aqui. Vou estar com um cravo no bolso e vou estar pronto para casar. Você pode aparecer ou não, mas eu vou estar aqui".
Era Maio de 79 e eu estava de pé, ao lado de Fernando. À meia noite a cidade inteira prendeu a respiração e Neli entrou na igreja. Ela estava radiante e absurdamente linda.

Ninguém em particular,

Seu cabelo é todo meio agroselhado e seu beijo tem gosto de amora. Meus dedos se mancham de vermelho quando toco seus lábios. Às segundas seus olhos têm cor de cajá. Espremo um limão maduro neles pra ver de que cor ficam. No reflexo dos seus óculos pareço uma flor em um caleidoscópio. Uma flor com brinco de pérola e saia rodada. Dentro dos seus olhos, agora de ameixa, chovem penas de pavão. Às luas cheias você vira silhueta e exala um cheiro de framboesa. Rôo minhas unhas para banhá-las em sangue e fazer um mar pr'a gente. Um mar gelado com cometas no fundo. E aí a gente se casa em época de pêssego, debaixo de um cobertor com cheiro de orégano. Se é que me entende.

M. (2009),

Escancarei as janelas de araucária e voltei-me para o interior da cozinha. Eu escancarava aquelas janelas de araucária todos os dias. A idade me ensinou a passar um batom cor de tangerina pela manhã, puxar o banco cor-de-abacate e pegar, no último armário, na última prateleira, acima da fôrma de pudim, a frigideira. Passos lentos, apanhava a caixa de fósforos, acendia a boca do meio do fogão e preparava um belo omelete para o café da manhã. Os pratos eram de porcelana e tinham uma borda alaranjada. Colocava os dois pratos à mesa, as duas xícaras, os dois copos de vidro, os dois pires, dois jogos americanos de pano, dois garfos, duas facas, quatro colheres, duas pequenas e duas grandes, dois guardanapos e um jarro de flores. Sentava-me exausta na minha cadeira e buscava o ar impaciente. Fazia um amontoado capilar no topo da cabeça, amontoado esse tão pequeno que eu prendia com um único grampo de ferro. Comia pouco, acabava guardando mais da metade do alimento que eu preparava. Cozinhava muito, cozinhava em todas as refeições. Tinha que continuar cozinhando insanamente, porque cozinhar era uma das poucas coisas que eu sabia fazer. Tinha que ocupar meu tempo e cozinhar para dois. Coisas complexas, cozinhas italianas, jamaicanas, australianas, moçambicanas. Todos os dias, depois das três, passava um protetor solar, colocava um vestido azul, uma sandália e andava algum bocado para o oeste, cantarolando um bolero qualquer. Abria os portões pesados e corria. Corria muito. Sabia o caminho, chegaria lá de olhos fechados, chegaria lá sem os óculos. Sentia meu coração chegar a um milhão de batimentos cardíacos, sentia todo o sangue do meu corpo sendo expelido por osmose, conseguia ver suas batidas. Chegava perto das quatro. Mais precisamente faltando dezenove minutos para as quatro. Sentava-me, ou melhor, deitava-me. Puxava o vestido até acima do joelho, fechava os olhos e arrancava punhados de grama. Chorava um pouco. Bem pouco, porque não sou mulher de chorar. Eu choro escondida, no banheiro, choro trancada no armário, puxo os telefones da tomada e choro. Chorar me faz fraca. Nunca trouxe uma flor para ele. Minto, ao nosso primeiro ano de namoro lhe dei uma rosa de plástico. Depois disso nunca mais. Mandei enterrá-lo com a flor presa no bolso do paletó. Enterrei uma carta ali ao lado e voltei para casa. Tinha que passar no mercado para comprar proteína de soja, porque ele adorava comida chinesa.

A carta:
“Talvez só hoje eu tenha entendido o que você quis dizer. Hoje me olhei ao espelho e vi uma senhora feia, charlatã, com um nariz grande e uma pinta no queixo. Acho que é a sua ausência que me faz feia. Queria ser bonita de novo.
A Isabela aprendeu a escrever um dia desses. Escreveu “vovó”. Achei um saco. A Sofia vai, definitivamente, dar uma mãe muito melhor que eu dei.
Parece que o chuveiro quebrou de novo. Pedi ao sobrinho do porteiro, aquele Emanuel, arrumar para mim. Ele colocou um elástico em volta d’aquela coisa vermelha e tudo parecia estar funcionando, mas ontem pela manhã, quando fui ligá-lo, ouvi um barulho estranho. Tive que tomar banho no banheiro do corredor. Tenho medo d’aquele banheiro. Besteira, né? Velho ter medo. Mas eu tive.
Sinto a sua falta. Volto a escrever depois.
Com muito, muito, muito amor,
Sua Helena.”

Meu instinto materno (2008),

A menina corria pelo jardim, a boca entreaberta e as bochechas rosadas. Ria desesperadamente, faltavam-lhe os dois dentes da frente. Sentou-se desajeitada no colo do pai, deu-lhe um beijo na bochecha. Expeliu os sapatos dos pés e passou os dedinhos na areia. Correu novamente e voltou com uma boneca habilmente maquiada de hidrocor. "Rosângela o nome dela", anunciou. Um metro e treze quilos de hiperatividade. Andava de um lado para o outro. E falava. Vocabulário impressionante, palavras que nem eu conhecia. Nem eu e nem mais ninguém. Falava e falava. Amassava o rostinho na janela, fazia caretas, depois ria e se escondia dentro dos armários. Logo abaixo da barra do vestido, via-se bandêides coloridos. Tinha os joelhos remendados, ralados e vermelhos. Corria novamente. Risada gostosa, cabelos escuros. Por fim, deitou estirada no chão, sorriu e fechou os olhos.
- Vou colocá-la na cama.
A mãe (e minha melhor amiga) sumiu pelo corredor. Os olhos dele brilharam por uma fração de segundo. Enfiei treze amendoins na boca e mudei de assunto.

M. (2008),

Ah, que merda!
Jogou a pasta de dentes com violência ao fundo da pia.
- Marco, vem cá!
Ainda de pijama e cachos bagunçados, deu uma olhada ao que ela apontava.
- Já te pedi, já te implorei milhões de vezes para que POR FAVOR, fechasse bem a tampa da pasta!
Ele suspirou.
- Agora olha essa merda solidificada na minha escova - balançou-a em direção a ele. - Às vezes eu acho que você faz de propósito - começou a lacrimejar. - É de propósito? Ah, caramba, porque é uma coisa tão simples, sabe? É só fechar a merda da pasta... É só uma pasta! É azul e você fecha, assim, ó! Tá vendo? - Chorava - Tenta entender isso! É impossível que eu escove os dentes quando existe uma pedra sabor Herbal Fresh entupindo a minha vida! - Escondeu o rosto nas mãos - Você poderia só fechar depois que usar, entende? Usa e depois fecha e aí, vá continuar vivendo sua vida oralmente higienizada! Esse "tec" que acontece quando você fecha, significa que a bosta da tampa está travada e que a pasta não solidificará!.. A não ser que esteja fora do prazo de validade, mas eu olho bem essas coisas. Você tem que confiar em mim pra isso, afinal só eu lembro desse detalhe da perecibilidade dos produtos... Só eu lembro disso... E da maldita tampa! - Voltou a chorar - me promete que vai fechar a tampa! Eu não agüento chegar aqui e ter que lidar com isso! É estressante demais, é tudo nas minhas costas, sabe? - Respirou fundo, limpou as lágrimas e apoiou-se na pia - e agora, como diabos vou escovar meus dentes? - Olhou para ele. - O que é que eu faço agora?
Ele puxou-a n'um abraço.
- Por que você não deita mais um pouco? Deixa que eu te faço um mousse de tomate e mais tarde te levo ao cinema...

Helena,

"Helena de Tróia,
Sua palavra é "Não": "Não tenho vergonha", "Não acho isso", "Não concordo", "Não discordo", "Não estou achando isso ridículo", ou a que deve estar na sua cabeça agora: "Não tem nada a ver" ou "Não entendi".
Engana-se se acha que isso é uma barreira ou dificuldade, pois é uma palavra poderosa, já que você NÃO admite NÃO poder realizar qualquer coisa. Continue realizando com seu carinho especial e diga SIM algumas vezes só pra confundir a gente.

Obrigada pelos seus sorrisos,
Luana."

M. (2008),

E se por acaso eu desmarcar teu livro, colocar o dedo na parte espelhada do cedê, apertar demais o tubo da pasta de dentes, deixar a comida queimar, esquecer de pagar a conta de luz, deixar o carro sem gasolina, jogar a toalha em cima da cama, reutilizar folhas de caderno, não ouvir o celular tocando, deixar o xampu aberto, contar o final d’um romance, deixar a luz do corredor acesa, não colocar a louça na pia, manchar o azulejo de guache, inundar meu trajeto banheiro-quarto, calçar o tênis sem palmilha, mudar a música do despertador, não aderir ao horário de verão, esquecer de te passar algum recado, guardar teus bilhetes no bolso, perder as chaves, quebrar o guarda-chuva, comprar um brinco que nunca vou usar, fazer listas de compras absurdas, deixar a janela aberta, cortar meu cabelo fora da época de lua cheia, contar várias vezes a mesma piada, não limpar as migalhas de pão que caíram na cama, gastar o troco com Trident, precisar de um abraço, te deixar esperando enquanto descarrego abstrações nas paredes do quarto, nas folhas á-quatro da impressora ou nas minhas mãos, esquecer d’um compromisso, te atrasar pro trabalho, entrar na via errada, dormir enquanto você dirige n’uma viagem, ligar o ar condicionado do carro, me recusar a pedir informações, assistir Polishop Domingo à noite, comprar romances-latinos-água-com-açúcar ao invés de fazer um depósito bancário, ler diariamente o horóscopo do jornal, recortar críticas de filmes, dormir no teu lado da cama, criticar a reforma ortográfica, assistir o Horário Eleitoral , desenhar rostos nos tomates, não ter nada para dizer, chorar de ciúmes ou te dar um beijo que só veio da boca? Você vai parar de me amar?

Fernando (2008),

Acordei de ponta cabeça num quarto que não era meu. Levantei assustada, numa camisola apertada, rezando para ser a única pessoa no quarto. E era. Eu e aquele terrível cobertor roxo, aquelas pernas branquelas e unhas pintadas de preto. Aquele corpo não era meu. Tropeçei até o outro lado do cômodo e tateei a parede inteira buscando o interruptor. Sentei na beirada da cama, desesperada. Queria meu corpo de volta.

De uns tempos pra cá, minha vida se tornou um caos. Fernando pediu demissão do emprego pra passar mais tempo comigo, acomodado entre a televisão e o sofá velho da mãe dele. Daí fernando me largou. Um belo dia, cheguei em casa com a sacola abarrotada de tubérculos e ele estava de pé, perto da porta, me esperando com o telefone na mão. "Não dá mais, Rebeca, sou homem da vida, dessa vez eu vou mesmo". Esperei até que ele começasse a rir. Ele continuou sério, fez as malas, vendeu o sofá, me deu um beijo numa bochecha, outro na outra, um abraço desconfortável (o único) e se mandou pro Rio. Liguei a tevê, peguei o sorvete de flocos e sentei no chão, na marca de mofo do sofá, tentando entender. Fernando que tinha comprado o apartamento, arranjado aquele sofá estúpido e era Fernando, o Fernando dos olhos castanhos, que sempre arranjava um trajeto diferente pro cinema. É, eu amava meu Fernando. Amava a armação preta dos óculos dele, amava a forma como ele me beijava na testa e entrelaçava minhas mãos na dele. E eu amava Fernando, a pessoa-Fernando, acima de tudo. Amava seu beijo gelado e amava a forma como sempre quis ser dele. Amava Fernando cada vez mais e ele não precisava fazer nada, ele não precisava estar ali, ele não precisava me amar mais. Me conformei que tinha sido sugada pr'uma dimensão paralela na qual nada fazia sentido. Me demiti, vendi o fogão e comprei ladrilhos alaranjados pro banheiro. Fernando era de touro e odiava laranja. Pensei que quando ele voltasse, talvez me ajudasse a mudar tudo pra azul de novo... E talvez depois disso, alugaríamos um documentário sobre biologia marinha e transaríamos a noite inteira. Mas Fernando nunca voltou. Nesse meio tempo parei de fumar, vendi meus quadros prum consultório de dentistas e contratei uma faxineira. Dona Maria aparecia lá terças e quintas, com um sorrisão no rosto e um esfregão dentro da bolsa.
Nada do que eu fizesse me faria esquecer Fernando. Ele estava em todos os lugares, eu não me esqueceria do sorriso dele nem em um milhão de anos.

Achei o interruptor, abri a porta do armário e me olhei no espelho. Era só o que me faltava, era agora uma menina, uma completa desconhecida, tinha um cobertor roxo e unhas dos pés pintadas de preto. Mergulhei os dedos na bolsa verde procurando um cigarro, drogas, qualquer coisa, mas só achei um caderno. Li tudo até as três da manhã e aí sim, só aí, entendi porquê eu estava no corpo da Helena e a Helena no meu. Eu era Helena... E Helena era eu. As únicas habitantes dessa realidade paralela, desse mundinho bizarro no qual as coisas erradas acontecem nos momentos propícios. Senti uma vontade absurda de abraçá-la. E foi isso o que eu fiz. E foi isso o que ela fez.
Helena me ensinou que o Fernando não volta. Não confio nela, só tem catorze/quatorze anos.

Fernando (2008),

A luz d'um trovão entrou pela janela, iluminando algumas partículas de poeira e a silhueta dos móveis do quarto por alguns milésimos de segundo. Do som, saia a voz macia de Kimya Dawson, que envolvia o quarto inteiro num embalo uniforme. A cena, de forma geral, dava uma incrível vontade de ir para algum lugar no globo com tons pastéis e comer maçã com mel. Aquela voz dava vontade de correr à chuva com uma roupa leve e contar estrelas. Aquela voz dava vontade de espalhar discos pelo chão e fazer planos para o futuro. Deitada na cama, com os cabelos castanhos espalhados pelo travesseiro, estava uma garota que dormiu sorrindo.
As letras, que iam desaparecendo da folha de papel à sua frente, deixavam de fazer sentido e a voz macia ia ficando mais distante, a vontade de comer maçã com mel mais forte e aquela cena, câmera lenta, olho no olho, ia ficando mais clara.

Marília (2008),

Passava das cinco e eu resolvi pegar um táxi. Simples assim, um impulso fortíssimo de me entregar a qualquer tipo de aventura pseudo-urbanóide, com a esperança de, no mínimo, ter meu fígado contrabandeado (vai entender). Passava das cinco e eu estendi o braço, entrei no carro de um tal de Domingos, Celta branco-amarelado caindo aos pedaços, cheiro de carro novo. Acendi um cigarro, e, por entre dentes, menti a idade. Perguntei se tinha filhos, ele, humor ácido, disse que precisava do endereço. Pensei um pouco e disse para ele ir em frente, eu avisava quando tinha que virar. Dei uma tragada e abri um pouco a janela para deixar a fumaça sair. Os prédios lá no alto formavam uma cúpula que separava o Sol do mundo aqui em baixo. Não que eu ligasse, por que, naquele momento, eu não estava nem aí pro maldito Sol e pra seus raios ultra-violeta. "Vira ali na segunda à direita, por favor". Abri a porta e, tropeçando nas palavras, entreguei uma nota amassada ao tal de Domingos-sem-filhos. Estava fumando o filtro do cigarro e nem tinha me dado conta de que começara a chover. Fiquei parada entre um tal de "Mercado São Augusto" e a rodovia. Passava das cinco e eu apaguei o toco de cigarro com o sapato, atravessei a rua e encontrei Marília. Eu não conhecia Marília e Marília não me conhecia, nem ao menos sei seu real nome. "Perdida também?". Ela olhou pra mim e colocou uma mecha dos cabelos ruivos atrás da orelha "acabei de me encontrar". O que aconteceu em seguida não sei explicar, mas passava das cinco e eu estava "pagando um drinque" para Marília. Sentamos na rodovia, dividimos uma garrafa de cerveja e, enquanto o sabor amargo envolvia minha garganta, ela me contou como tinha chegado ali. Eu não me lembro de uma palavra sequer. Marília era linda, tinha cabelos curtíssimos, olhos negros e uma falha nos dentes. Naquela noite eu dormi com ela. Não lado a lado, mas corpo a corpo, o meu no dela. Acordei tonta, passava das cinco e Marília estava sentada na beirada da cama, seios nus, cobertos pela colcha barata de hotel e um baseado apoiado entre os dedos e a cabeceira da cama. Aquela foi a última vez em que vi Marília em toda a minha vida. Voltei andando pela rodovia, passava das cinco e eu não tinha nenhum cigarro para me desenfezar, em forma gasosa, de minhas angústias. Marília tinha levado todos junto com meu dinheiro, minhas chaves e meu coração. Sentei na soleira da porta de casa e esperei minha mãe chegar do trabalho. Passava das cinco, ela ia demorar só mais um pouco agora.

K. (2007),

E no momento em que ela o viu, ela poderia jurar que nunca tinha visto nada igual. Simplesmente deixou seus olhos se acomodarem àquela visão e se acostumarem com a luz que saia dele e de tudo o que ele fazia. Não conseguiu sorrir por que estava boquiaberta. E as luzes do garoto a envolveram e a fizeram se aproximar. Estava tudo bem. Ela podia voar de novo (e daí tiramos a lição de que nada nem ninguém pode te impedir de fazer isso que a literatura moderna chama de "viver", na falta de um nome melhor). Ela sentiu todas as partículas do seu ser gritando por ele, pedindo ar e ela precisou fechar os olhos para sentir as batidas do seu coração ficarem cada vez mais devagar, sua respiração cada vez mais profunda e tantas outras atividades cotidianas do corpo humano. Ela sentiu a cabeça ficar leve, as mãos suarem e os joelhos quase cederem. Ela sentiu a vibração dos sinos, viu fogos de artifício e ouviu André Gonzáles em sua fantástica cantoria. E estranhamente, as coisas continuavam acontecendo ao seu redor e as pessoas continuavam dançando, como se não conseguissem vê-lo refletido no castanho sem graça dos seus olhos assim que eles foram abertos. E tudo isso aconteceu em menos de um segundo. Ou talvez fosse o efeito do álcool. "CARPE DIEM", ela disse. E ela parou ao lado dele, levou as mãos à cabeça e dançou para ele enquanto ele fazia o mesmo (dançar para ele). E talvez ainda fosse o álcool ou as luzes, ou as borboletas, mas as únicas coisas de que ela vai se lembrar pra sempre são os piercings e o All Star. Mas cá entre nós, saiam luzes dele por algum motivo, correto? Ou como Anthony Kiedis o descreveria perfeitamente em Road Trippin'; "just a mirror for the sun". E foi por isso (e por alguns outros fenômenos da natureza) que ela não conseguiu ver a cor dos olhos dele. E claro que isso foi seguido por um paradoxo, já que quando os olhos deles se encontraram, ela viu todas as cores do mundo. E foi meio atrapalhado e excitante, muito atraente. E não havia mais nada em volta deles. Nem chão, nem estrelas, nem música, por que, naquele momento, ele era tudo aquilo.