terça-feira, 30 de junho de 2015

Encrenca de quem não pode, nem deve, nem vai ter

Eu mesma já não lhe prestava respeito. Não lhe jogava bola, estava pouco aí, nem me importava, considerava-me curada. O processo foi duma pena passada: dezenas de radioterapias (Caymmi, Belchior, Bowie), de medicinas alternadas (pinga e dengo) e mais ainda, da tua ausência. Daí, muito por isso, batido o alarme do desapego, lhe materializei:

Foi tal como meus pesadelos aeroviários. Eu desintegrava o assento da cadeira com as unhas, cheia dos berros, a turbina explodia em maremoto metalúrgico pra cima de mim. Levava no estômago aviões voadores que pipocavam, emborcavam e caiam. Naquela noite lhe pesquei primeiro pelos olhos. Seguiram-se as armações dos óculos, a rebarba da orelha encostada no meu travesseiro e a boca espigada vindo na minha direção. Eu cobri os olhos ligeira na emboscada do beijo, mas, ao contrário, você abicado em mim, começou um relato qualquer, ali, entre meus lábios.

Na metalinguagem do conto, você sonhara comigo. Foi coisa breve, de instantes, mas caminhávamos pela calçada, contornando os bueiros propulsivos. Nada de mais, no entanto me alegrou tropeçar no teu pensamento. Você, ainda ali, ecoante no céu da minha boca, precisava lavar e sujar panos de prato comigo. Minha barriga aeroportuária era empanturrada do vazio duma sensação muito deleitosa de tão arquetipada e cabeluda. Me restava meter as mãos pela sua braguilha, lhe abocanhar o sangue e o suco. Eu ruminava e gozava os suspiros de declaração silvada que você me dava. Teu bem querer por mim zunia dentro da minha cabeça. A lembrança é excruciante.

Acordei, empapada num sabor azedo de suor que não é, nem nunca será seu. O sol tentava entrar pela janela, mas tudo fechou o tempo da cortina pra dentro. Os olhos que me olhavam eram montados na íris do desafio. Fui avessada, brochada, enchida da raiva mimosa de quem não terá. Munida da lasca da fronha, acavalada naquele diabo de corpo que não é teu, o asfixiei por debaixo do travesseiro.