quarta-feira, 18 de novembro de 2015

À vó

Joana Negreiros era o nome da minha avó materna. Até esta manhã ela ainda era teoricamente viva, ancorada em todo tipo de artifício tecnológico e entubador que mantivesse seu corpo operante e sua cabeça vazia. Minha vó artista viveu uma parábola (um trecho de montanha russa) com a degradação cachacenta do Alzheimer, do Parkinson, do que tinha direito, mas com um início fabuloso, extremamente mentiroso, todo legendário. Quando escrevo para ela e sobre ela, preciso mantê-la como terceira pessoa. Como um personagem que eu ponho em apresentação: minha vó que não está nem cá nem lá. 
Ela tinha uma mãe branquinha, mirradinha, habitante do Amazonas. Viu minha vó crescer em oca e mandioca. As últimas palavras da Joana foram uns “mamães” de partir o coração. Já crescida, a caminho de Manaus, minha vó conta que o avião caiu e não sei quantas pessoas morreram. Mas ela não, porque era durona e mais: não tinha o menor medo de voar. Eu tenho. Um pavor. Um colapso. Fosse menos instruída na arte do autocontrole, seria a pior companhia aeroviária. Eu que já choro e, semanas antes da viagem, já carrego a certeza da minha morte eminente. Não entro em uma sala de embarque sem todo um ritual de reza ateísta e despachamento espiritual. Já em Manaus, ainda conta a minha avó, foi quando conheceu Che Guevara. Bati os dados historicamente: o sujeito esteve no Norte do Brasil na época. Não estou me proclamando neta distante de revolucionário pseudo cangaceiro nenhum, longe de mim. 
Ela amava o Rio de Janeiro. Ainda está lá, em casa. Minha vó foi artista plástica, bem da boêmia. Pintava retratos por encomenda, sentada na frente do cavalete, segurando a foto em questão numa mão e na outra um pincel fininho. Mas sua escola eram os temas indígenas. Enchia as paredes com primeiras missas, talhava os armários de floresta amazônica, metia arara, mamilos, pézinhos e urucum onde houvesse espaço. Foi casada, divorciada, abandonona, fez quatro filhos e meio, um mais lindo que o outro. Assim que eu nasci, minha vó me pegou dos braços da enfermeira e foi tratar de meter dois brincos, um em cada orelha. E era assim que eu já estava quando minha mãe me amamentou pela primeira vez. Daí em diante, parece que nunca me entendi com os santos dessa mulher. Ainda muito pequena, descontrolada, vivia fazendo caretas para a Joana. Não gostava da forma como ela me olhava e nem de quando encostava em mim. Eu sabia que ela explodiria a qualquer momento. 
Ela nunca ficava doente. Um dia bateu uma febre, enxaqueca, gripe, tudo duma vez, minha vó, índia por dentro, branca por fora, voltou pra aldeia e foi ter com o pajé. Após um nada de exame ele perguntou se ela gostava de tartaruga. Ela amava tartaruga: frita, assada, crua talvez, com pimenta do reino, bem salgada, acompanhada dum licôr. Mas a tartaruga em questão deveria ser criada. Assim, Joana, sei lá como, meteu um bicho na bolsa, voltou pro Rio de Janeiro e largou a fulana no chão de taco do apartamento de Copacabana. Dali em diante, sarou. Sarou sentada, metendo pedacinhos de mamão e couve na boca das bichinhas (no plural, porque até o fim, conto quatro ou cinco). 
Disse-me uma vez que havia encontrado o Papa, reunido-se com ele, conversado um tanto. Neste ponto da minha adolescência, já não levava fé em nada nela. Aos 70 anos pulou da ponte amarrada por uma corda, mas naquele tempo que minha vó vinha nos visitar, sentava em frente à TV e chantageava a empregada para que fosse ao mercado comprar umas cervejas. Era assustador vê-la bêbada. Minha vó era muito agressiva e muito vaidosa. Adorava batom. Vestia-se como eu me visto. Frequentava a casa do Chico Buarque. Redundante: eu sou minha avó. Guardadas as devidas proporções. 
Ela já estava infantilizada, presa numa clínica, pintando quadros tenebrosos que regrediram a colagens em folhas A4, o próprio nome, rabiscos e nada. Um dia, com a minha prima, limpando o sebo dos armários, encontramos a tal foto da minha avó com o Papa João Paulo II. Ela estendia uma moldura imensa em que ele rezava a primeira missa. Ele sorria, eles conversavam sobre o quadro e ele posava para o retrato. Mas naquele ponto, ainda que eu quisesse, não arrecadaria mais história nenhuma pra contar. Fosse cabeluda do jeito que fosse. 
Nos saltos das gerações, acho que minha vó encarna cada vez mais em mim, conforme descarna de si. Minha mãe sabe e vê. No entanto, o que quero deixar registrado: este pensamento, antes, me provocaria arrepios. Não mais. Quero que ela seja muito bem vinda. 

Pintura da vó

Diário de viagem: salmo a São Paulo

Meus calcanhares martelavam o chão do aeroporto na fuga em direção ao portão de embarque. Eu provavelmente estava atrasada: metade lordose da maleta pesada no meu ombro direito e metade furiosa por ter gasto doze reais numa garrafa de água. Em frente, na minha direção, vinha um grupo de velhotes com uniforme de bocha e pirocas tensionadas detrás das bermudas. Segurei a caixa do trompete com força entre os dedos, enquanto eles babavam, ejaculavam e me pediam para tocar na flauta deles. Despirocada, num acesso de ralha, enquanto a esteira me arrastava na outra direção, eu urrava “porcos e broxas”. Entrei com os dois pés direitos na aeronave e rezei até que desembarcasse em São Paulo. 
Assim que o portão automático se abriu, me desceu pelo nariz toda bruma impregnada de haxixe (ou talvez só monóxido de carbono) que era o ar da cidade. Tomei um ônibus, uma ladeira, entrei na rua Artur Prado número sei lá quanto e cacarejei a campainha para acordar minha anfitriã. Fizemos arroz e feira. Toda quinta fecham a perpendicular à entrada do prédio e, aos gritos, compra-se alface, couve, camarão, agrotóxicos, colheres de pau, pastéis e o escambau. 
Naquele dia ainda desci e subi a Paulista, formando e estourando bolhas nas bordas do pé. Vi uns rostos, retiragens e exposições. Voltei pelo caminho da padaria, fritei um pão no ovo, virei três garrafões de cerveja e assisti o último episódio da novela.
De manhã eu peguei a caixa da corneta, um metrô e caí na Pinacoteca. Ao lado do museu havia um parque onde sentei, treinei e toquei uns pedaços de Summetime até que me marcasse a embocadura. Recebi uns “jóias” aprovativos de quem passava, que me valeram mais que umas moedas de trocado. Imbuída de muita fome, me perdi entre as ruas desgovernadas, umas tais em que não se falava português e era difícil saber a procedência dos pratos. Guiada por um cheiro de óleo passado, encontrei um senhorzinho que vendia pipocas, mas bastou que eu virasse a esquina e duas bicha falidas, com cheiro de cola e peitos murchos, me vieram veladamente tentar assaltar. Eu as convenci a levar só o pacote que eu comia e elas foram embora. 
Debaixo da chuva, entrei na estação da Luz em hora de pico, gado e de cardume. Não posso imaginar o suplício duma esmagação diária: das cotoveladas, dos corpos suados, dos cheiros de dente mal escovado. Esfoliei-me muito no banho e andei até a rua Roosevelt. O Leonardo me esperava debaixo do toldo, fugido do aguaceiro, já matando os goles da garrafa. Quase conseguimos comprar ganja. Pulamos os portões de um viaduto debaixo da delegacia. Lá embaixo uma velha dormia sentada e um rapaz andava de skate. Derramamos cerveja e dançamos dois solos debaixo dos holofotes do túnel e da garoa. Seguimos pro samba em frente à Igreja Nossa Senhora Achiropita. Voltamos pelo mesmo caminho a tempo do aniversário da Clarisse, a tempo do borrão na minha memória, em que bebemos, dançamos, ligamos Faroeste Caboclo no jukebox e apitamos para um táxi. O tal motorista me deu uns dedos de prosa, me tranquilizou sobre minha prova no dia seguinte, levantando barricadas contra a minha insegurança, desligou o rádio e nos enrolou o caminho. 
Às 11h eu estava de pé, ainda bêbada, me metendo no figurino de calça social e blusa poá, tirando e colocando o o bojo dos peitos e lubrificando os pistos do trompete. Peguei dois ônibus e cheguei na USP. Em meia hora eu já caminhava de volta pra parada, depois de muito satisfeita, bem e comida. Em cima do palco da minha prova, fiz o que podia, o que queria e o que me cabia. Resultado algum tiraria meu mérito de dentro da cabeça. 
Naquela noite, fomos ao puteiro, no esquema da entrada a dez contos de réis incluindo uma cerveja aguada da pior qualidade, pole dance e piscina de bolinhas (mentira). A sorturneza do salão não era tão hostil quanto asquerosa. Imbuídos de todo o aval, uns homens e moleques esfregavam os dedos pelas costas de mulheres semi-nuas, que se aproximavam com os olhos de peixe morto e sussurravam um valor de três dígitos em suas orelhas. Um deles veio querer saber por que eu não parecia trabalhar ali. Lhe disse que estávamos todos a viagem e turismo, assim como ele. O dispensei gentilmente. Dali a dois ou três instantes ele voltou puxando todo tipo de papo e ainda querendo saber por que eu parecia ser a pessoa mais interessante dali. Ofendeu-se porque eu não queria prosa, não queria seus olhos em cima de mim e não queria lhe dar meu número. Ele me chamou de estranha-esquisita-escrota e eu concordei, fuzilando-no com a vista. 
Saímos dali para uma festa que esvaziava exponencialmente, um open-bar sem bebidas em que entramos de graça. A Sampa, naquele início de viagem era uma vertigem das rodas que eu fazia e uma distensão nas fibras da coxa, porque eu não era ergonomicamente adaptada às calçadas da cidade. Fechamos a manhã na padaria, entre escândalos de celebração de aniversário. Peguei dois metrôs e caí em coma, na cama. 
Era domingo, demorei a reagir. Levantei atrasada para o show do Bixiga, povoado de umas barbas, cachos e óculos premonitórios, além de muletas, um roubo e quinze gotas de THC. Em cada frevo que chegava, naquele dia, pegava as duas músicas finais. No vagão, a caminho, recebi uma mensagem sobre o resultado da tal prova. Desliguei o celular. Sentamos em frente ao “Banheiro Mulheres” da estação República, fugindo do vento e tomando um açaí. Contornamos os colchões atulhados de vivedores de rua que constelavam na passagem e chegamos na Roosevelt. 
Eu já me sentia solitária e pessimista (então culpada). No bar, escondida, espiei o resultado da lista de aprovados na tela do celular. Uma lista que pulava o meu nome e o de todos que ali estavam comigo. Resolvi não compartilhar nada, que eles ignorassem por mais alguns instantes. Nesse ponto da decepção, a cantora de cima do palco cantava No Woman, No Cry. E dançando foi que afastei a tristeza antes mesmo que ela se encostasse em mim. 
Lá fora, sentados nas escadas, pitando, engolindo e cantando todo tipo de mpbs, nos veio um sujeito meio arcanjo, todo negro, com voz de vitrola, que nos olhava nos olhos, falava de desapego, ganhava um copo de cerveja e sumia. 
Na tarde seguinte tentamos, eu e Clarisse achar um kebab, que virou sushi de pepino e frango no curry. Encontrei o Leo para a saideira dele. Pegamos um ônibus até o Parque Ibiraquera, cada um em sua postura. Ele informava-se bem e um tanto, pediu que o cobrador e uma outra passageira nos avisassem onde descer, coisa que eu nunca faria. Gosto de fingir que sou conterrânea e envergonho-me profundamente de me dirigir a qualquer pessoa que de fato o seja. 
Lá dentro, nos gramados, demoramos até encontrar um ponto entre dois seguranças para que pudéssemos fumar. Encontramos uma fícus enorme e toda enredada de raízes, como aquela árvore da UnB que indiscrimina maconheiros. Compramos ovos de amendoim e água de côco. Com a despedida dele eu senti a antecipação do meu luto pessoal, como se ouvisse um despertador ao longe. 
Fui para a casa da Roberta, um apartamento mobiliadamente muito semelhante ao meu, cheio de vegetais na geladeira e uma rede no meio da sala. Ela me emprestou um conjunto preto, eu coloquei meu colar de barro e pegamos o metrô até a casa de um amigo que ela achava que eu devia muito conhecer, tantas as afinidades. 
Ele morava no terceiro andar de um triplex com um gato da cara esmagada e a maior televisão que eu já vi em vida. Eram palmos de polegadas. As paredes todas eram cobertas de pôsteres graficamente desleixados com palavras de ordem, atulhados de ideias, planos e mandingas. Ele passou horas nos enchendo o copo, passando o cigarro e mostrando vídeos, com os olhos pregados na amiga ao meu lado. 
Pegamos um táxi e chegamos, ineditamente, cedo demais numa festa de tambor de crioula. Estávamos nós, o outro Leonardo e os técnicos da casa. E ali começou meu rapto. Meus olhos brilhavam e se demoravam num sujeito que permanecia sentado, levantado, caminhante, me lançava uns vislumbres curtos e continuava a trabalhar. Saímos para comer algo (uma batata frita muito da cara e miserável) e quando voltamos, já havia gente, música e até festa. Gastei setenta reais em cerveja, dancei forró e côco, girando por diferentes braços e coxas, aceitando diferentes goles de diferentes bebidas, num baile lindo de batucado de ao vivo.
Ali talvez tenha me dado conta do respeito que uma bolha de homens da cidade grande podem prestar a uma mulher como eu. Chegavam com jeito e nada pediam. Eram muitos a mais do que eu estava acostumada, mas meus olhos lantejoulados voltavam a cair no técnico da mesa de som. E eu entenderia os motivos e as causas depois. Ele tinha uns olhos de passarinho fujosos, embolados em uns cachos e num sorriso de sapê. Me lembrava muito alguém. Minha coragem borbulhava no malte e por isso fui com a mão até seu ombro. “Você vem sempre aqui?”. Ele não entendeu minhas intenções e respondeu a minha pergunta enquanto girava e apertava os botões. Contou-me que não deveria estar ali, normalmente trabalhava em outro lugar, noutro contexto, era sistemático, músico e técnico, enfim, era um pouco de coincidência. Perguntou de mim. Se vinha sempre ali. Eu lhe disse que era de fora, lógico, muito por isso o abordava com essa cantada tão da barata. Plantou-me uma saltitação, uma recomposição de alegria, fenômeno que julguei ser fruto do álcool. Eu lhe era como um segundo beijo, a segunda mulher na vida, um segundo reconhecimento - aquilo me bateu - mas um tão hospitaleiro, tão familiar… Eu estava satisfeita. 
Fechamos a festa à hora do trem. No dia seguinte, acompanhada do Zé e do Leo, fui ver a exposição da Frida e de conterrâneas. Era tudo só beleza e eu estava grata de me plantar em frente a murais tão femininos e suculentos, com os quais eu podia trocar qualquer olhar de cumplicidade.
Em frente ao museu havia um container que servia cervejas especiais. Dividimos uma e provei um chopp de ostras. Encontrei um cara que me erguia a sobrancelha e falava um tanto de política e esquerdismos. Foi um bálsamo. Até o final da noite, perdi meu tempo em rodas de prosa e panfletos informativos acerca do uso correto de drogas. Troquei figurinhas no vigésimo oitavo andar, um rapaz tentou me beijar, um taxista se compartilhou de toda a vida comigo, ele focado e eu não, enfim…  
Acordei e não havia água. A água voltou e já não havia luz. Fiquei presa no décimo quarto andar, trancada pra fora das escadas, silenciosa, tomando um banho gelado no breu, aguardando. A faxineira chegou e me salvou o dia, me abriu a porta e me fez uma sopa. Devo ter passado meia hora descendo os lances de escada. A rua inteira estava apagada. Entrei na padaria e não me quiseram espremer um suco. Comprei uma água de côco daquelas industrializadas, fedorentas e assim que abri a embalagem, a lâmpada piscou e as máquinas voltaram a chiar. 
Eu esperava ansiosamente. Ao meu lado um homem barbudo metia pedaços de tomate na boca e falava alto demais ao telefone. Ele levantou-se e nunca mais nos cruzamos. Dali, atravessei a rua e entrei pela porta do Fiat azul. Subimos (eu e ele) a Paulista e, com o pé metido no freio, no gotejamento de engarrafamento, ele me beijava, me passava os dedos pelos cabelos, pelo pescoço, pelas pernas e pelas mãos. Seu toque me escorria, mesmo quando andávamos enlaçados, mesmo sentados do Alto de Pinheiros, ou quando eu lhe colocava a par dos meus fatos e ele o mesmo. 
Havia, novamente, algo de muito doméstico ali, muito acostumado. Assistimos ao “pôr do sol”. Em toda honestidade, fade out da luz é muito pouco pra quem ama como louco e mora no Plano Piloto, mas mesmo assim, mesmo sem vermelhos, laranjas e lilases, mesmo sem a bolota de sol, sem cúmulos de nuvem alguma, entre os arvoredos, no alto da cidade, sentada entre suas pernas, eu sabia que talvez estivesse ali algo de que eu não conseguiria me esquecer. 
Buscamos um amigo dele e fomos ver uma peça musicada e gloriosa, sensacional (O Meu Lado Homem). Seguimos para a cobertura de aniversário de um tal Tubarão, completa de gente que eu quererei no meu meio. Eu me soltava, falava um tanto, me agarrava, mastigava e vomitava. Acordei apaixonada. 
A ressecava embrulhava meu estômago, eu me enrolava no edredom, virava copos de água e pensava em trazer as malas e as cuias pr’aquele poço de cidade. Demorei a arrastar o corpo pra fora de casa. Meti os chinelos e fui caminhar. Varei a Paulista de ponta a ponta: tentaram me coagir a costurar uns dreads no cabelo, quase comprei um disco excessivamente caro da Gal Costa, passei algumas vezes em frente a um protesto simbólico (um pato de banheira gigante e inflado que queria dizer ‘não vamos pagar o pato’, acerca do aumento de impostos). Fiquei irritada. 
Em frente aos jovens que me pediam para assinar o tal abaixo assinado, dois adolescentes comiam um salgadinho e seguravam um cartaz de papelão que dizia “estamos com fome”. Deixei minha interlocutora ativista falando sozinha e fui até uma lanchonete. Comprei dois hamburgueres simples e os entreguei à menina, que nem me agradeceu. Voltei pra casa e de lá pra dentro da rotina do Fiat. 
Ele voltava de uma operação de dublagem, vestia uma camiseta de manga e a essência de Palo Santo, um frasquinho que ele fazia, vendia e me deu, como forma de judiação e urucubaca, provavelmente prevendo que meu travesseiro adotaria o novo odor. Tivemos nosso tempo engarrafados, nosso tempo de peixes, de cafunés e busca incessante por uma vaga, um buraco pra enfiar o carro. Entramos no show do Siba, na Casa da Mancha. 
Eu sentia como se estivesse consagrando matrimônio. Eu (justo eu), que sentimento nenhum cultivava, que era atolada das incertezas, que não sentia sabores, não me deixava envolver, não me enfiava em furada. 
Em um instante ele me disse como foi tão bom ter me conhecido. Da boca pra fora, como se a palavra me atravessasse de uma vida passada, sem filtro, eu disse: a gente já se conhecia antes. Eu não sou mística, nem candombleira, sou muito da agnóstica supersticiosa e pouco sinto, mas nele eu fico reencontrada. 
Comemos um pastel de palmito no posto e arrombamos o finado Puxadinho para que ele me mostrasse onde costumava trabalhar (ou onde deveria estar no dia em que nos conhecemos). A casa estava lacrada pelo Psiu (uma lei do silêncio arbitrária que vem e desemprega, hostiliza, marginaliza e chama música ao vivo de barulho. Estou bem acostumada). 
Pegamos o carro, entramos pelo portão dos pinheiros, pela a porta à direita da bananeira despodada, pra sala instrumentada, na cozinha com o vizinho de quarto e as visitas, os papos de tsunami tóxico e o fim do mundo. Ele montrou um ninho na cama de solteiro, nos aguamos e nos amamos. Viramos a noite em quatro ou cinco horas em que ele se imprimia em mim e eu nele. Reimpressão, eu digo. Fomos mãos, pêlos, línguas, breu completo e um CD alemão que repetia e repetia. Não gostaria de deixar nada por relatar, mas está passado. Cada suspiro e dengo assomava a uns diálogos sussurrados que não fechavam com a minha cabeça. Meu corpo o conhecia, se lembrava, mas não era arrebatador. Não me subia o embrulho pela garganta, não havia nenhuma movimentação no estômago, eu não estava explosiva e não estava atulhada de hormônios. Não havia a taquicardia, nem o nervosismo. Muito pelo contrário. Era como se matasse saudades de algum tempo corrido, como se estivesse acostumada à sua presença e ao bem que ele me queria. O meu pedaço encaixava no dele. No entanto meu córtex não entendia e nem muito o queria fazer. Me dizia que eu estava mentindo. Que era encantamento, que eu velejava na piscianidade, no afeto que ele, melhor que ninguém, soube me oferecer. Que ele é líquido e cabe no recipiente que constar. Que reforma-se. Que eu estava carente. Que não viajasse na maionese. Neste ponto do diário, eu percorro uma lista imensa de substantivos: os dentes, as panturrilhas, as pintas, a barba, as orelhas perfumadas e o encaixe. Eu concluo, então: não são sentimentos, são reconhecimentos. 
Viramos a noite, ele me deixou em casa e pegou um ônibus pra Minas Gerais a trabalho. Sonhei a manhã inteira. Eu estava afiliada. Seis horas depois, peguei o metrô pra São Bento. Fui arrastada pelo Mercado Municipal, comprei uns pedaços de fruta e caminhei pela 25 de março abarrotada de consumidores. Trouxe umas luzes de Natal pra casa, apesar da voltagem errada. Fiquei sabendo d’um prédio altíssimo com visão panorâmica da cidade. Eu buscava um céu constelado de edifícios. Ele estava interditado, ou demolido. Desci na estação Vergueiro, em direção ao Centro Cultural de São Paulo. Era um tombamento bem ocupado por famílias, artesãos de papelão, seguranças, estudantes, dançarinos, leitores de mangá e jogadores de xadrez. Não entendi o funcionamento das exposições e não quis me informar. Munida do fone e da canga, deitei no gramado do jardim suspenso e dei a assistir os aviões passando logo acima (perto demais).
Eu não pensava. Nem sentia. Aguardava. Jogava uvas verdes dentro da boca. Os casais se enrolavam muito, uns nos outros. Talvez por conta de tanta osmosidade, de tanto têr e vêr, por ser mesmo um buquê - a cidade - por ser palco de ilusões, São Paulo me colocava n’outro lugar. No meu lugar. Na minha estima real de grão de areia em olho de gigante. Ninguém lhe vê, de fato. Alguém te observa, mas não lembra. Não basta uma boa ideia, não basta ser conquistador, colonizador. Há que trabalhar. Há que centrar. Há que ter sorte e muita atenção. Há que ter coincidências e aliados. Há muito tempo e nenhum a perder. Há um mundo livre. Eu queria estar ali. “E estou”, diz meu diário. Quero tudo, todo dia, a toda hora: o amor, o reaça, a solidão, a multidão, o parque, a babilônia, o alto, a vertigem, a claustrofobia, o frevo diário, religioso, impecável, as possibilidades todas, enfim, cidade com nome de gente. 
Levantei do gramado e fui abordada por um fotógrafo gringo com uma câmera analógica pendurada do pescoço. Ele me falou de um projeto que desenvolvia, estava viajando pelo mundo todo, em seguida ia para Brasília. Eu deixei que ele tirasse uma foto minha e fui embora. 
Em Vila Madalena, comprei um prato de milho e um chá na caixa, para trocar o dinheiro das passagens. Encontrei a Roberta, que me resgatou e me enfiou numa clínica de Reiki. Eu vinha com a blusa branca, em plena sexta feira de orixás, na esperança de um placebo das minhas dores. Me perguntaram minhas queixas: insensibilidade emocional, enjôos, crises respiratórias e vícios. Ainda me pediram que classificasse meu apetite, sono, carinhos, alegrias… Entreouvi as meditações e me coloquei a fazer o mesmo. Estava silenciada, expulsando os pensamentos e sentindo o grande nada que me ocupava: a grande apatia que eu era, mas não queria. 
Um senhor japonês acupunturista me chama pelo nome e me conduz até uma sala. Ele não me olha nos olhos em momento algum, não sorri e me diz uma porção de coisas que eu já sabia. Um bando de obviedades que não se deve dizer a alguém doente. Me diz que o leme é meu, que a mudança cabe a mim, que ela é pra já, mete o foco todo em meu vício alcoolatra, não busca, nem tenta entender os motivos, apenas as rotinas. Fala em autocontrole, autopresença, automóvel da vida. Ainda me diz que arranje um emprego e coloque meus planos nos eixos. Não entende minha simpatia pela solidão, minha cansadez de repousar a cabeça e a carência em qualquer um. Me dispensa logo para o tratamento. Já acredito menos. 
Entro em uma palestra. No mesmo instante mudam de assunto: antes astrologia, abruptamente reencontros. Falavam num léxico de “amor incondicional”, “conexões de almas”, carapuças e mais carapuças que me abismaram e me levaram lágrimas aos olhos. Mas eu ainda não sentia nada. A ministrante vira na minha direção e me lança uma flecha, diz: “uma coisa real, uma coisa sentida, relevante, una, etc, não precisa ser grandiosa. Não há que ser espalhafatosa. Nem física. Nem compreensível. É apenas um encontro, uma identificação, um algo”. Fechei os olhos e comecei a rezar. Ali eu já queria chorar. E sentir. Sêr. 
A sala ia esvaziando, a chuva aumentava e a luz caia. Eu sentia meu corpo fechado e era justamente o contrário que eu precisava: sentir com a mente e pensar com o peito. Quando levantei as pálpebras, já enxergava muito melhor, menos míope, menos desencaixada. Chovia tão alto que não se escutava mais nada. Haviam arquivado a minha ficha por engano e eu fui a última a ser chamada. Mas não me importava em nada. Era paciente literal. Fiquei alguns momentos na sala de espera. O escuro, o cheiro de incenso e o barulho de gota. Entrei na sala para uma sessão individual. 
Ao rapaz que me escutava eu consegui explicar melhor a dor da apatia. Queria que ele entendesse a origem e a semente dos vícios. Eu não era agente e responsável. Nem vítima. Eu estava vivendo minha vida na perspectiva errada, os estímulos eram todos externos. E como dominó, minhas reações também. Eu atuava a todo o tempo e não tomava instante para sentir. Ele pareceu entender. Me guiou por uma ladeira musguenta onde eu ia abandonando as bagagens sem nem me dar conta no que havia dentro delas: mochilas, malas e caixotes nos cantos da estrada. Ele me tocava a cabeça e as costelas. Saí flutuante pra dentro de uma chuva que me trincou os músculos desguardados. Fui uma contradição física. 
Encontrei a Tuti, a muito esforço, com a bateria morta do celular e nos abrigamos da água em um bar. Bebi pouco, voltei cedo, colecionei mais histórias de taxistas e em casa já estava sóbria. Acordei sentindo-me muito bem. Fiz ovos. Fazia tempo que a comida não me acarinhava o estômago. Andava vivendo de azia. Tomei um banho, recebi um Milton Nascimento de presente mineiro. Respondi com um Doces Bárbaros, lavei toda a louça, tirei a blusa e eu e Clarisse elaboramos o almoço mais trágico que se tem notícia: arroz salgado, cenoura queimada, muito curry na abobrinha e uma couve perfeita. Estávamos destemperadas. Ela correu atrasada para a reunião e eu lhe roubei uma saia. 
Entrei em um cemitério e no epicentro encontrei um silêncio descomunal. Havia queixas de pássaros e algumas ambulâncias passando ao longe, mas era o suficiente. Eu caminhava por labirintos de absolutamente nada. Eu estava completamente sozinha. Pedi licença, sentei nos musgos da cova de uma anglo-saxã, meti as mãos no colo e meditei por alguns minutos. Minha mente limpa era amarela e eu cultivava uma sensação muito boa. Eu irradiava. Eu mandava pra fora e pra dentro em mesmo tempo: mandava pra BH, pra trilha de lama, pra Síria, pro Quênia, mandava pra Paris, mandava pra dentro do coração de quem queria briga, mandava pra debaixo do solo, mandava pra cima e pros lados. Algo me acordou. Levantei, bati uma foto e saí pela rua. Dei de cara no Beco do Batman, um mural urbano de grafite e colôr que não me impressionou tanto quanto as artes pingadas que já permeavam a cidade.
O caminho era um deleite apinhado de galerias, lojas de avental e escorredor de macarrão, bares, gravuras e triângulos. Pedi uma cerveja para escrever. Chegou minha prima bailarina. Chegaram dois paulistas. Chegaram três e quatro. Eles iam e vinham. Uma moleca que passava na rua, voltada de uma festa briguenta, deixou o celular cair no bueiro. Enquanto começava a chuva, a Roberta amarrou com um cadarço o cabo de vassoura na pá e resgatou o fulano do fundo. Foi uma festa. Seguimos para dois ou três outros bailados. Gafieiramos, pamperamos, estacamos e arregamos.
No dia seguinte, na minha saideira, mais o PV, a Tuti e uma garrafa de Bacardi contrabandeada, fomos à matinê de carnaval da Casa das Caldeiras. Compramos coroas de flores na entrada e sapateamos pelo dia quente afrente. Comprei quatro potes de pimenta, no calor da bebedeira. Finalizei minha última noite na sopa de lentilha.
Acordei às cinco. Apertei a soneca algumas vezes e pulei da cama, aflita. Deixei um bilhete para a Clarisse. Gostaria que tivessem sido flores. O dia se abria rosado e eu peguei um táxi até a linha vermelha do metrô. De lá, por fim, entrei no Fiat azul. Preocupação nenhuma me assolava. As saudades não me deixavam - como não deixam - triste. Na correria da última chamada, findou a minha viagem e estourou a minha caneta, no ponto final do diário.