quarta-feira, 18 de novembro de 2015

À vó

Joana Negreiros era o nome da minha avó materna. Até esta manhã ela ainda era teoricamente viva, ancorada em todo tipo de artifício tecnológico e entubador que mantivesse seu corpo operante e sua cabeça vazia. Minha vó artista viveu uma parábola (um trecho de montanha russa) com a degradação cachacenta do Alzheimer, do Parkinson, do que tinha direito, mas com um início fabuloso, extremamente mentiroso, todo legendário. Quando escrevo para ela e sobre ela, preciso mantê-la como terceira pessoa. Como um personagem que eu ponho em apresentação: minha vó que não está nem cá nem lá. 
Ela tinha uma mãe branquinha, mirradinha, habitante do Amazonas. Viu minha vó crescer em oca e mandioca. As últimas palavras da Joana foram uns “mamães” de partir o coração. Já crescida, a caminho de Manaus, minha vó conta que o avião caiu e não sei quantas pessoas morreram. Mas ela não, porque era durona e mais: não tinha o menor medo de voar. Eu tenho. Um pavor. Um colapso. Fosse menos instruída na arte do autocontrole, seria a pior companhia aeroviária. Eu que já choro e, semanas antes da viagem, já carrego a certeza da minha morte eminente. Não entro em uma sala de embarque sem todo um ritual de reza ateísta e despachamento espiritual. Já em Manaus, ainda conta a minha avó, foi quando conheceu Che Guevara. Bati os dados historicamente: o sujeito esteve no Norte do Brasil na época. Não estou me proclamando neta distante de revolucionário pseudo cangaceiro nenhum, longe de mim. 
Ela amava o Rio de Janeiro. Ainda está lá, em casa. Minha vó foi artista plástica, bem da boêmia. Pintava retratos por encomenda, sentada na frente do cavalete, segurando a foto em questão numa mão e na outra um pincel fininho. Mas sua escola eram os temas indígenas. Enchia as paredes com primeiras missas, talhava os armários de floresta amazônica, metia arara, mamilos, pézinhos e urucum onde houvesse espaço. Foi casada, divorciada, abandonona, fez quatro filhos e meio, um mais lindo que o outro. Assim que eu nasci, minha vó me pegou dos braços da enfermeira e foi tratar de meter dois brincos, um em cada orelha. E era assim que eu já estava quando minha mãe me amamentou pela primeira vez. Daí em diante, parece que nunca me entendi com os santos dessa mulher. Ainda muito pequena, descontrolada, vivia fazendo caretas para a Joana. Não gostava da forma como ela me olhava e nem de quando encostava em mim. Eu sabia que ela explodiria a qualquer momento. 
Ela nunca ficava doente. Um dia bateu uma febre, enxaqueca, gripe, tudo duma vez, minha vó, índia por dentro, branca por fora, voltou pra aldeia e foi ter com o pajé. Após um nada de exame ele perguntou se ela gostava de tartaruga. Ela amava tartaruga: frita, assada, crua talvez, com pimenta do reino, bem salgada, acompanhada dum licôr. Mas a tartaruga em questão deveria ser criada. Assim, Joana, sei lá como, meteu um bicho na bolsa, voltou pro Rio de Janeiro e largou a fulana no chão de taco do apartamento de Copacabana. Dali em diante, sarou. Sarou sentada, metendo pedacinhos de mamão e couve na boca das bichinhas (no plural, porque até o fim, conto quatro ou cinco). 
Disse-me uma vez que havia encontrado o Papa, reunido-se com ele, conversado um tanto. Neste ponto da minha adolescência, já não levava fé em nada nela. Aos 70 anos pulou da ponte amarrada por uma corda, mas naquele tempo que minha vó vinha nos visitar, sentava em frente à TV e chantageava a empregada para que fosse ao mercado comprar umas cervejas. Era assustador vê-la bêbada. Minha vó era muito agressiva e muito vaidosa. Adorava batom. Vestia-se como eu me visto. Frequentava a casa do Chico Buarque. Redundante: eu sou minha avó. Guardadas as devidas proporções. 
Ela já estava infantilizada, presa numa clínica, pintando quadros tenebrosos que regrediram a colagens em folhas A4, o próprio nome, rabiscos e nada. Um dia, com a minha prima, limpando o sebo dos armários, encontramos a tal foto da minha avó com o Papa João Paulo II. Ela estendia uma moldura imensa em que ele rezava a primeira missa. Ele sorria, eles conversavam sobre o quadro e ele posava para o retrato. Mas naquele ponto, ainda que eu quisesse, não arrecadaria mais história nenhuma pra contar. Fosse cabeluda do jeito que fosse. 
Nos saltos das gerações, acho que minha vó encarna cada vez mais em mim, conforme descarna de si. Minha mãe sabe e vê. No entanto, o que quero deixar registrado: este pensamento, antes, me provocaria arrepios. Não mais. Quero que ela seja muito bem vinda. 

Pintura da vó

Nenhum comentário:

Postar um comentário