terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Prefácio

O corpo dentro da vitrina: velho, roído, todo têso, já em tempo de abrir (as portas e as pernas). As paredes balançavam com a sineta da basílica de São Nicolau, e ainda, debaixo do toró de gelo, não aparecia pessoa alguma. Fazia três semana que não recebia um níquel, dormia de favor e vendia-se pela bagatela de um nada, fora o que lhe servisse de comer, beber e cheirar. Foi quando abrolhou, na frente da vidraça, com a orelha de cá arrancada e esporrando sangue, um sujeito desagasalhado. Ela fez sinal, assim, com os dedos para que ele entrasse.

Fazia muito frio, a ventania entrava pelas frestas dos dentes, o meliante se equilibrava por cima dumas pernas roxas e tremeliquentas, nu em pêlo, acorrentado n’im um relógio de ponteiro, carregando orvalhinhos de gelo e remela nos olhos. Fechou a porta atrás de si e caiu no chão desacordado. Teodora lhe colocou a cabeça entre os bojos e regou sua testa de beijocas. Rascava o beiço do planalto do nariz até a cordilheira do gogó. Lhe metia a língua na corcova detrás da orelha. Passava então para a lavra manual, enfiando os dedos pelas nádegas, beliscando tufos de cabelo, etecétera. Sentia-se muito escassa e sábia, daí abocanhava umas farpas de carne que saiam da chaga da orelha, mastigava e engolia.

Como se estivesse completamente oca, há tanto só, tão paupérrima e ainda faminta, drenava daquele corpo todo o calor e todo o frio. Quando o rapaz, horas mais tarde, exausto, despertou, engatalhou em toda história do diabo da sua vida. Se dizia filho do sol, vindo a pé do além mar. Andara não sei quantas mil léguas e, recentemente, trocara a aba do ouvido esquerdo por uma caixa de Pandora que há muito deixara para trás. Estava chupado como um osso e aquilo, a Teodora, se apareceu como assunto mais urgente a assentar. Nos dias que se seguiram, foi a rameira até a cidade para abater carteiras e comprar bandejas de coxas de frango para lhe engordar. E ele embuchava sim senhor, em pouco tempo não cabiam os dois juntos na cama. A ela parecia que quanto mais ele inchava, mais espaço ocupava em seus rasgos e cissuras vazios. Aquele intrigante viajante lhe provocava súbitas palpitações, era algo como amor.

Da relação de canibalismo afetuoso e simbiose do frango assado, nasceu uma criança, que chamaremos de Miúdo. O pobre do Miúdo, criado em bordel, filho de pai sem orelha, achatado feito um passarinho, não tardou a ganhar mundo, arranjou um cargo de cantante de rua e, com os trocados que tirou, comprou uma passagem de ida para a cidade ao lado. Ainda que tivesse sido educado com muita pressa, o menino lograva um bom coração. O problema é que não dormia, descansava as pernas e a goela, mas virava a noite de cabo a rabo, esperando o despontar do sol. Nesse giro, sua cabeça envelheceu mais rápido que o corpo, como se tivesse o dobro de tempo, o dobro de pulos das sinapses.

A lucidez era maldição, em tudo via propósito, origem e origami. Em pouco endoidou. Quando cantava, latia. Desmoronava em chororô por muito pouco, ou quase nada. Raspou os pelos da sobrancelha e arrancou os dentes da boca. Ao menos é o que contam. Foi quando um dia, instalado dentro do bueiro, com os dois olhões apontados pra fora, pousou a vista numa moça que vinha desabalada rolando pelo asfalto, com um sapato de cada cor. Ela ancorou com a fachada de frente para ele, enfiou a cabeça no covil e lhe lascou um beijo enorme e esticado. Ele já não conseguia sair dali ou puxá-la para dentro. Contentou-se com a folia de línguas e mucosas que recepcionava. Foi assim que se conheceram os meus pais. Segundo me contam, numa manhã de domingo, enquanto se moquecavam num cultivo de repolhos, me encontraram, recém formada, enrolada pelo pescoço no cordão umbilical. Mas essa história fica pra outro momento.