quarta-feira, 30 de novembro de 2011

M. (2009),

Escancarei as janelas de araucária e voltei-me para o interior da cozinha. Eu escancarava aquelas janelas de araucária todos os dias. A idade me ensinou a passar um batom cor de tangerina pela manhã, puxar o banco cor-de-abacate e pegar, no último armário, na última prateleira, acima da fôrma de pudim, a frigideira. Passos lentos, apanhava a caixa de fósforos, acendia a boca do meio do fogão e preparava um belo omelete para o café da manhã. Os pratos eram de porcelana e tinham uma borda alaranjada. Colocava os dois pratos à mesa, as duas xícaras, os dois copos de vidro, os dois pires, dois jogos americanos de pano, dois garfos, duas facas, quatro colheres, duas pequenas e duas grandes, dois guardanapos e um jarro de flores. Sentava-me exausta na minha cadeira e buscava o ar impaciente. Fazia um amontoado capilar no topo da cabeça, amontoado esse tão pequeno que eu prendia com um único grampo de ferro. Comia pouco, acabava guardando mais da metade do alimento que eu preparava. Cozinhava muito, cozinhava em todas as refeições. Tinha que continuar cozinhando insanamente, porque cozinhar era uma das poucas coisas que eu sabia fazer. Tinha que ocupar meu tempo e cozinhar para dois. Coisas complexas, cozinhas italianas, jamaicanas, australianas, moçambicanas. Todos os dias, depois das três, passava um protetor solar, colocava um vestido azul, uma sandália e andava algum bocado para o oeste, cantarolando um bolero qualquer. Abria os portões pesados e corria. Corria muito. Sabia o caminho, chegaria lá de olhos fechados, chegaria lá sem os óculos. Sentia meu coração chegar a um milhão de batimentos cardíacos, sentia todo o sangue do meu corpo sendo expelido por osmose, conseguia ver suas batidas. Chegava perto das quatro. Mais precisamente faltando dezenove minutos para as quatro. Sentava-me, ou melhor, deitava-me. Puxava o vestido até acima do joelho, fechava os olhos e arrancava punhados de grama. Chorava um pouco. Bem pouco, porque não sou mulher de chorar. Eu choro escondida, no banheiro, choro trancada no armário, puxo os telefones da tomada e choro. Chorar me faz fraca. Nunca trouxe uma flor para ele. Minto, ao nosso primeiro ano de namoro lhe dei uma rosa de plástico. Depois disso nunca mais. Mandei enterrá-lo com a flor presa no bolso do paletó. Enterrei uma carta ali ao lado e voltei para casa. Tinha que passar no mercado para comprar proteína de soja, porque ele adorava comida chinesa.

A carta:
“Talvez só hoje eu tenha entendido o que você quis dizer. Hoje me olhei ao espelho e vi uma senhora feia, charlatã, com um nariz grande e uma pinta no queixo. Acho que é a sua ausência que me faz feia. Queria ser bonita de novo.
A Isabela aprendeu a escrever um dia desses. Escreveu “vovó”. Achei um saco. A Sofia vai, definitivamente, dar uma mãe muito melhor que eu dei.
Parece que o chuveiro quebrou de novo. Pedi ao sobrinho do porteiro, aquele Emanuel, arrumar para mim. Ele colocou um elástico em volta d’aquela coisa vermelha e tudo parecia estar funcionando, mas ontem pela manhã, quando fui ligá-lo, ouvi um barulho estranho. Tive que tomar banho no banheiro do corredor. Tenho medo d’aquele banheiro. Besteira, né? Velho ter medo. Mas eu tive.
Sinto a sua falta. Volto a escrever depois.
Com muito, muito, muito amor,
Sua Helena.”

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