quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Fernando (2008),

Acordei de ponta cabeça num quarto que não era meu. Levantei assustada, numa camisola apertada, rezando para ser a única pessoa no quarto. E era. Eu e aquele terrível cobertor roxo, aquelas pernas branquelas e unhas pintadas de preto. Aquele corpo não era meu. Tropeçei até o outro lado do cômodo e tateei a parede inteira buscando o interruptor. Sentei na beirada da cama, desesperada. Queria meu corpo de volta.

De uns tempos pra cá, minha vida se tornou um caos. Fernando pediu demissão do emprego pra passar mais tempo comigo, acomodado entre a televisão e o sofá velho da mãe dele. Daí fernando me largou. Um belo dia, cheguei em casa com a sacola abarrotada de tubérculos e ele estava de pé, perto da porta, me esperando com o telefone na mão. "Não dá mais, Rebeca, sou homem da vida, dessa vez eu vou mesmo". Esperei até que ele começasse a rir. Ele continuou sério, fez as malas, vendeu o sofá, me deu um beijo numa bochecha, outro na outra, um abraço desconfortável (o único) e se mandou pro Rio. Liguei a tevê, peguei o sorvete de flocos e sentei no chão, na marca de mofo do sofá, tentando entender. Fernando que tinha comprado o apartamento, arranjado aquele sofá estúpido e era Fernando, o Fernando dos olhos castanhos, que sempre arranjava um trajeto diferente pro cinema. É, eu amava meu Fernando. Amava a armação preta dos óculos dele, amava a forma como ele me beijava na testa e entrelaçava minhas mãos na dele. E eu amava Fernando, a pessoa-Fernando, acima de tudo. Amava seu beijo gelado e amava a forma como sempre quis ser dele. Amava Fernando cada vez mais e ele não precisava fazer nada, ele não precisava estar ali, ele não precisava me amar mais. Me conformei que tinha sido sugada pr'uma dimensão paralela na qual nada fazia sentido. Me demiti, vendi o fogão e comprei ladrilhos alaranjados pro banheiro. Fernando era de touro e odiava laranja. Pensei que quando ele voltasse, talvez me ajudasse a mudar tudo pra azul de novo... E talvez depois disso, alugaríamos um documentário sobre biologia marinha e transaríamos a noite inteira. Mas Fernando nunca voltou. Nesse meio tempo parei de fumar, vendi meus quadros prum consultório de dentistas e contratei uma faxineira. Dona Maria aparecia lá terças e quintas, com um sorrisão no rosto e um esfregão dentro da bolsa.
Nada do que eu fizesse me faria esquecer Fernando. Ele estava em todos os lugares, eu não me esqueceria do sorriso dele nem em um milhão de anos.

Achei o interruptor, abri a porta do armário e me olhei no espelho. Era só o que me faltava, era agora uma menina, uma completa desconhecida, tinha um cobertor roxo e unhas dos pés pintadas de preto. Mergulhei os dedos na bolsa verde procurando um cigarro, drogas, qualquer coisa, mas só achei um caderno. Li tudo até as três da manhã e aí sim, só aí, entendi porquê eu estava no corpo da Helena e a Helena no meu. Eu era Helena... E Helena era eu. As únicas habitantes dessa realidade paralela, desse mundinho bizarro no qual as coisas erradas acontecem nos momentos propícios. Senti uma vontade absurda de abraçá-la. E foi isso o que eu fiz. E foi isso o que ela fez.
Helena me ensinou que o Fernando não volta. Não confio nela, só tem catorze/quatorze anos.

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