sábado, 15 de novembro de 2014

Ocaso

Já era noite fechada. Batia o toque do relógio. Batiam no passeio as solas dos sapatos. Batiam as mães nos briocos das crianças e batia o martelo nos pregões. O covil recém cavucado da catacumba se delongava alguns palmos pra baixo. Dentro do caixote, morta, ajuizada, c’os dois olhos bem abertos, repousada, calada, esperava. Por detrás das pupilas arregaladas ecoava o estrondo dos punhados de terra que atiravam por cima do caixão. Passada a enxurrada, seguiu-se o silêncio. Cá estou, pensava, instalada na perpétua cripta. Um polvilho seco lhe empapava a boca e ela não conseguia emitir zurrada alguma. O risco que a corda fizera ao lhe trespassar a garganta fervia. Ela aguardava. Lá fora o sol eclodia pela quarta ou quinta vez. Entornava fulgor, alvor e calor. Alumiava um tudo, ela imaginava. Seu palácio hermeticamente cerrado, turvo e abafado, cada vez mais apertado, cada vez mais desbotado. No curso dos anos corridos, instalou-se-lhe na cabeça um cancro matador. Dos tempos de vivência, herdara o negrume devastador que culminou no suicídio: atirada pelo piquete da janela, pendurada pelo pescoço. Carcomia-se. A esta altura já decompunha-se. Era um caniço mascado, escangalhado, recheado de vermes balofos, empanturrados. Ainda podia balouçar o naco do dedo indicador, que tamborilava freneticamente. Ali, com tudo esclarecido, a mente torrada e enegrecida, punha-se tod’arranjada e composta para o que viria a seguir (“Há algo! Virá! Seja um roçado, o matagal do Éden, seja o abismo afogueado e desassossegado do Hades. Ainda que o previsto seja este último: a Dinastia da Labareda, o cão de três cabeças à guarda do pórtico, o sabor de ferro,  o “grão poço, amplo e profundo”, repartido em dez cavas o seu fundo. Ainda que umbral purgante: há algo fora da masmorra!”). Já não tinha reminiscências da vida, tinha a mente em ruínas. Afigurava primorosamente, no entanto, o ensejo do suicídio. Ainda podia resgatar o gosto da linfa lhe subindo à boca, a fuça estourada, enfurecida, o coração crápula parado, as bolsas de ar afogadas no ranço amargo dos motivos que lhe conduziram àli. Às vezes ainda sentia a vertigem da dependurância e saracoteava os pés flutuantes (que nesta vau do transe já não existiam). O propósito daquilo, porém, lhe fugia. Não percebia se era causo de amor, de vingança, dinheiro ou doença. Pouco lhe importava, na verdade. A esta altura lhe sobrava um par de olhos escangalhados na casca das órbitas. Ainda assim, esperava.


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