Me ocorreu, mas de
tanto imaginar, fiquei endurecida, incapaz, vegetativa, imóvel, um
poço de transpiração, o coração ricocheteando pra fora,
inspirando mais ar do que precisava... Era impraticável, como seria
feito? Me percorreu um alívio: era impossível, não adiava tentar.
E nesse impulso da desistência, eu me fui contradição. Parei o
carro e soltei o cinto. Latejei pelas artérias todas, minha boca na
sua, estática, a respiração presa, o silêncio... O silêncio
infinito que nós somos. Você arrancou as borboletas de mim, me
despaginou toda, de dentro pra fora, de lá pra cá. Eu era um vazio,
uma fome... Evitando encontrar seus olhos, seu gosto de fumo e seu
coração imprevisível, mas carona após carona, sua insistência e meu querer, o álcool também, seu aperto, o colchão suado e sua
cara de vilão: foi inevitável. Não sei de onde você tirou que
podia me olhar daquele jeito por baixo dessas sobrancelhas, que podia
me roubar, me levar contigo, passar os dedos no meu cabelo, me
mastigar, ser cativo, hilário, maravilhoso, que tinha qualquer
direito de me pagar um jantar, me cheirar, me fazer esperar, me dar câncer de pulmão, cirrose, pílulas do dia seguinte, e sua
inconsequência, seu carinho, seu sono pesado, seu canto soprado... Eu não posso nem mesmo te odiar, porque você pisa no prego,
derrapa no chão e deixa metade do pé na quina da mesa, joga álcool
noventa e cinco por cima e me olha com essa bravura toda. Me desafia
a não te querer bem. Oportunista. Agora toma, pega o diabo do meu
coração e faça bom uso.
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